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As cidades visíveis: esboços de futuros

  • Foto do escritor: Valdemir Pires
    Valdemir Pires
  • 26 de nov.
  • 50 min de leitura
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Sinopse


Viagens a grandes e tecnologicamente exuberantes cidades chinesas e da Península Arábica inspiraram a escrita de As cidades visíveis: esboços de futuros, em diálogo com As cidades invisíveis, de Italo Calvino, propiciando a formulação das noções, articuladas entre si, de modo de vida, estilo de vida e jeito de viver, a partir das quais, aceitando-se o conceito de modo de produção, é possível refletir sobre as novas e ainda não totalmente compreendidas condições existenciais que foram e estão sendo geradas pelas rápidas e profundas mudanças (tecnológicas, econômicas, políticas, sociais, geopolíticas e culturais) do final do século XX e do início do século XXI. Este livro é um convite a um atencioso olhar humanista sobre as possibilidades futuras (ganhos, perdas e riscos) engendradas pelas decisões e fazeres individuais e coletivos, locais e globais que pontuam o nosso presente urbano-industrial mutante.


Um livro que vai sendo

 

Nada é: tudo vai, aos poucos e precariamente, sendo. O que se aproxima de ser, arrasta consigo aquilo que antes se aproximou de ter sido, e se agarra àquilo que almeja um dia ser.


Assim, este é um livro em permanente movimento no tempo. Por isso é mantido no formato virtual, exclusivamente neste site. Seu texto é alterado com frequência, conforme as necessidades sentidas pelo autor ou reclamadas pelos leitores. Isso quer dizer que embora as questões fundamentais com que lida continuem sempre as mesmas, a maneira de abordá-las e as respostas circunstancialmente dadas a elas não cessam de mudar, como acontece com as cidades, desde que começaram a ser construídas, e com os jeitos de nelas se viver. [Última versão: 16/11/2025 - exemplar em pdf pode ser solicitado para pires.valdemir@gmail.com ]


Apresentação

 

Palavras-chave saltam das páginas deste livro algo enigmático, que esconde a pergunta que todos nos fazemos, e que o autor sintetiza como: “onde, afinal, se esconde o mistério da vida?”.


Valdemir Pires transita entre as modernas cidades quase ficcionais do Oriente Médio e da China, marcando seus passos com impressões certeiras, sublinhando a repetitividade da busca da originalidade a qualquer preço: “Quando tudo tiver encontrado uma ordem e um lugar em minha mente, começarei a não achar mais nada digno de nota, a não ver mais o que estou vendo. Porque ver quer dizer perceber diferenças, e, tão logo as diferenças se uniformizam no cotidiano previsível, o olhar passa a escorrer numa superfície lisa e sem ranhuras” (p.32).

As cidades “circenses”, “ostentatórias”, que “se vestem de futuro”, apresentam ao turista nada além do ouro de tolo (p.38), malgrado o esforço investido em apresentá-las.

Cada qual busca se mostrar como a joia da coroa de um novo modelo de desenvolvimento (no caso chinês) ou da simples superexploração de miseráveis importados da Índia, de Bangladesh, do Paquistão, da Malásia, da Indonésia ou das Filipinas pelos extremamente ricos, locais e globais.

Saídas para o modo de viver são apontadas aqui e ali, sem que transpareça a segurança de um futuro certo e melhor. Às vezes o passado dialoga com o presente, às vezes é sumariamente descartado. A vida, afinal, continua a escoar, seja por entre os carros de luxo, nos metrôs lotados, nos jardins exuberantes ou nos becos escondidos.

Indivíduo e coletivo se olham como num espelho. Na busca da compreensão do significado desse reflexo Valdemir conversa com Fukuyama, Jacoby, Marx, Mbembe, Guéheno, Bauman, Adorno, Gogol e Dostoievsky. Mas onde, afinal, se esconde o mistério da vida?


Piracicaba SP, outubro de 2025





Para Rosoé Donato (in memoriam)





Sumário

 

Prefácio 6

Cidades (Visão) 10

A paisagem e o olhar 12

A partida (Introdução) 13

I – Cidades: vitrines de modos e de estilos de vida 15

II – As cidades visíveis árabes 18

Doha 20

Saná 23

Mascate 26

Manama 28

Kuwait 31

Abu Dhabi 34

Dubai 36

Riad 39

O futuro esboçado pelas cidades árabes 43

III – As cidades visíveis chinesas 46

Zhuhai 48

Hong Kong e Macau 52

Shenzhen 56

Chongqing 60

Xangai 63

Pequim 69

Shenyang 72

O futuro esboçado pelas cidades chinesas 76

IV – Modos e estilos de vida esboçados pelas cidades visíveis árabes e chinesas 78

V  – Modos e estilos de vida e jeitos de viver: o indivíduo e a sociedade sob a lente do mesoscópio 82

Modo de produção e modos de vida 82

Estilos de vida 84

Jeitos de viver 86

O mesoscópio: para além e entre o micro e o macro 89

As experiências existenciais na cidade sob a lente do mesoscópio 92

A chegada e o horizonte (Conclusão) 96

Posfácio 103



Prefácio 


Diante de um livro, cada leitor constrói um percurso próprio de reflexão e de sentido. Ler não é apenas decodificar palavras, mas acionar memórias, afetos e repertórios. Nenhum autor controla integralmente o que o texto despertará, pois a experiência da leitura se desenrola no espaço silencioso entre o leitor e suas interpretações, ancoradas em sua cultura e trajetória. Costuma-se afirmar que autores desejam que o encontro com a obra seja um diálogo. Contudo, o livro, em sua materialidade tradicional, opera como comunicação de via única, do autor para o leitor. Paradoxalmente, é o leitor quem inaugura o verdadeiro diálogo, não com o autor, mas consigo mesmo. Confronta as ideias do texto com seus saberes, crenças, dúvidas e sensibilidades. Cada leitor lê com os “óculos culturais” que possui, de modo que o texto não é apenas recebido; é interpretado, reconfigurado e apropriado. A rigor, não existe “uma” obra, mas “várias”, conforme o número de leitores e conforme o número de vezes que alguém retorna ao texto.


Nesse movimento, o livro deixa de ser texto e torna-se experiência. Nenhum autor controla esse processo, porque aquilo que a obra oferece é apenas o horizonte do autor, enquanto aquilo que o leitor produz é o horizonte de sua própria história, ainda que impactada, de alguma forma, pelas ideias do autor. As apropriações são sempre imprevisíveis, sobretudo para quem escreveu o livro.


É precisamente aqui que esta obra intervém e se mostra original. O projeto de Valdemir Pires não se limita a apresentar uma análise sobre as cidades contemporâneas; ele pretende romper com a lógica clássica da obra acabada e propõe outra forma de relação com o leitor. Coerente com a ideia de que o futuro não é algo distante, mas algo que já está em curso no presente, o autor concebe este livro como obra do porvir, inacabada, em contínuo processo. Convida os leitores ao diálogo e reconhece que o livro pode ser transformado pela interlocução. Ao disponibilizá-lo em plataforma digital, abre a possibilidade para que o leitor não apenas leia, mas reaja, comente e questione. A obra se apresenta como processo, nunca como produto final. Será retomada em diálogo com os leitores, não para ser reescrita conforme seus desejos, mas para incorporar os efeitos que reações, comentários e questionamentos provocarem na forma como o autor compreende os temas que atravessam o texto. Trata-se de um livro que não se encerra em si, que se reabre a cada provocação e que torna o leitor corresponsável por esse movimento.


Há a pretensão declarada de que seja um livro de afetos mútuos. Mesmo que o diálogo com o autor não se concretize, o livro certamente afetará o leitor. Cada afeto terá suas singularidades, que o autor não poderá prever nem direcionar; no máximo, provocar. Por isso, é um livro que nasce como processo e se realiza como experiência.


Os afetos que esta obra me proporcionou nessa primeira leitura são irremediavelmente singulares. Minhas formas de percepção sociológica foram acionadas, fazendo emergirem temas que me atravessam: modos de vida, desigualdades invisíveis, cidades como vitrines e laboratórios do futuro, a materialidade das estruturas e a fluidez dos desejos. À medida que avançava pelas páginas, minhas referências teóricas se ativavam. Dialoguei com Marx ao recordar que os modos de vida expressam relações materiais e formas históricas de produção. Com Lefebvre, percebi a cidade não como cenário, mas como obra social produzida por forças políticas e econômicas. Norbert Elias surgiu quando fui provocado a pensar que as cidades condensam medos e desejos coletivos, e que a civilização é também gestão dos afetos e construção de sensibilidades mediadas por relações de interdependência.


Outros autores também se fizeram presentes nesse diálogo silencioso. Simmel emergiu quando a cidade apareceu como forma que intensifica estímulos e produz uma subjetividade blasé. Weber se insinuou ao notar racionalizações do espaço urbano que buscam eficiência, controle e previsibilidade. Bourdieu apareceu quando estilos de vida e distinções se espacializam e transformam a cidade em mapa de capitais. Harvey se impôs quando a urbanização surgiu como estratégia de acumulação do capital. Bauman ressoou quando percebi a liquidez das relações urbanas e a corrosão do espaço público. Le Breton e Maffesoli tornaram-se visíveis ao refletir sobre os modos sensíveis de habitar. Castells atravessou minha leitura quando os fluxos de dados, de capitais e de imagens mostraram que o global e o local se entrelaçam nas cidades contemporâneas.


Eu poderia ter optado por descrever aquilo que “li” da obra, destacando que, a partir da minha leitura, o livro apresenta determinadas abordagens e uma estrutura específica. Poderia registrar que este não é um livro de turismo nem de arquitetura, mas um exercício de interpretação sociológica mediado pela viagem, em que viajar não significa deslocar o corpo, e sim deslocar o olhar para observar o futuro em construção. Poderia ainda sublinhar como a obra articula modos de vida, estilos de vida e jeitos de viver, revelando processos como a concentração radical de riqueza, a intensificação do consumo, a gestão tecnopolítica da vida e as desigualdades dissimuladas sob luzes de LED. Poderia, igualmente, enfatizar que o texto nos convoca a pensar e a agir no presente, para que o futuro urbano seja projeto coletivo e não espetáculo de poucos; que a cidade seja lugar de convivência, dignidade e possibilidade de vida comum. Mas tudo isso seriam apenas as minhas leituras. Convido você a produzir as suas.


Cada trecho acionou em mim uma constelação de diálogos anteriores que me constituem, igualmente em movimento. Por isso, você não apenas lerá o livro; lerá a si mesmo por meio do livro. A leitura desencadeia uma conversação múltipla e silenciosa entre a obra, suas referências e sua experiência. O texto de Valdemir Pires funciona como gatilho interpretativo: provoca associações, convoca teorias, reorganiza paisagens, abala certezas. É um livro que mobiliza pensamentos não apenas no texto, mas na mente dos leitores. O autor quer dialogar com você e convida-o a apresentar suas impressões, dúvidas e questionamentos. Literalmente, deseja o diálogo.


Ler é ser afetado. Este livro não me deixou no mesmo lugar, e acredito que não deixará você. Valdemir Pires dá um passo adiante. Ele não escreve apenas para ser lido. Ele escreve para dialogar. 

 

Maceió AL, novembro de 2025








"E o meu coração

Embora finja fazer mil viagens

Fica batendo parado naquela estação" (Adriana Calcanhotto, Naquela estação)


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"Estava a pensar que há viagens sem regresso. E que nunca mais vou voltar desta viagem. Nunca mais vou regressar ao deserto." (Miguel de Souza Tavares, No teu deserto)


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Cidades (Visão)


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O coletivo de homem é cidade, como o de cidade é país/nação: o singular atinge o coletivo por agregação de indivíduos sobre uma porção de terra, a qual qualifica o processo de quantificação com que se trabalha ao pluralizar. Assim é desde o momento histórico em que o sedentarismo deu à humanidade uma base geográfica para aquilo que viria a se denominar civilização, diante da qual o selvagem ou o bárbaro passou a ser aquele que vinha de fora da cidade, principalmente das florestas e das águas próximas ou distantes.

Cidades são espaços construídos para viabilizar a vida em sociedade, permitindo que os indivíduos e famílias se abriguem, que a comunidade trabalhe e pratique as trocas daquilo que cada um ou cada grupo produz, sob uma determinada forma de organização do poder. Nelas se manifesta uma cultura que permite compreender os aglomerados urbanos como obra de arte viva que, como tal, modifica-se com o passar do tempo, evoluindo ou involuindo ao sabor de variáveis históricas tanto gerais/externas como de variáveis locais/internas.


Cidades são a manifestação, no solo/terreno, sobre a superfície do planeta, da vida humana que aí se organiza, visando não só a sobrevivência e permanência, mas também buscando cercar-se de confortos e prazeres e procurando criar novos modos e estilos de vida, nos quais potenciais crescentes de realização e expressão do humano se materializem.

           

Cidades acolhem a vida individual, grupal, social, ao mesmo tempo em que são por ela criadas, numa simbiose entre organismos vivos e materiais oferecidos pelo meio natural local e das vizinhanças, tanto próximas como distantes. Assim, cidades são vitrines de modos de vida, são catálogos de estilos de vida; cidades são bibliotecas de todo saber possível e imaginável, exceto aquele buscado pelo ermitão: o indivíduo que foge da convivência, detesta a multidão e, ao fugir para a caverna, floresta ou ilha, nem por isso escapa da cidade: ele sai da cidade, mas a cidade jamais sairá dele enquanto viver.

           

Cidades têm identidades próprias, delineadas a partir dos fazeres, sonhos, derrotas e vitórias daqueles que nelas vivem e/ou por elas passam, em suas respectivas buscas, que tanto se entrelaçam como se chocam entre si. Cada uma delas ostenta, maiores ou menores, seus troféus, suas cicatrizes, suas exuberâncias, suas extravagâncias – as marcas, enfim, de tudo que nela viveram, vivem e seguirão vivendo os homens e mulheres que pisam seus logradouros e adentram seus recintos.     


Toda cidade é cindida: de um lado, a cidade visível, audível, palpável, com seus cheiros e sabores – paisagem, vias, prédios/arquitetura, movimentos/veículos, atividades/ferramentas etc.; de outro, a cidade invisível, plasmada nas relações, instituições, crenças/valores e esperanças do homem urbano, em alguns casos insinuados, por exemplo, em monumentos ou partidos arquitetônicos. Cidade visível e cidade invisível interpenetram-se, ensejando a cidade existente, que, pode-se dizer, tem corpo e alma, assim como os indivíduos humanos. E as cidades morrem, quando abandonadas pelos seus habitantes, posto que estes, ao deixarem-na, ainda que fisicamente intacta, desarticulam o que havia sido a alma coletiva das edificações e logradouros antes ocupados.

           

Cidades, como os homens, se relacionam umas com as outras, porque cada homem ou grupo de homens que transita entre as cidades leva para aquelas a que se dirigem a cidade de onde partiu. Imitando o comportamento humano, cidades sentem inveja, simpatia/antipatia, praticam imitação, maledicência e, não raro, confrontam-se; em geral ajudam-se mutuamente, à base de satisfação de interesses mútuos.

           

Dentre as cidades existentes, a maioria é quase invisível, muitas são visíveis e algumas são notáveis. O serem notáveis tem como causas fatores históricos que é possível identificar, observando dados presentes e/ou passados e potencialidades quanto ao futuro, relacionados à economia (riqueza), à política (poder), à natureza/geografia e à cultura; tais cidades atraem – migrantes, turistas/curiosos, investidores, intelectuais, artistas etc. – e por isso adquirem uma “personalidade” distinta, de que as demais não desfrutam.


A paisagem e o olhar (Motivação)


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O futuro está sendo delineado nas cidades globais em que a inovação tecnológica (aspecto econômico da realidade) e os novos arranjos de poder (aspecto político da realidade) se combinam e se apresentam, brilhantes e coloridamente iluminados (com evidente intenção de deslumbrar), aos olhos do viajante atento, incapaz, ainda, de identificar a cidade invisível única por trás da explosão de consumo e espetáculo a que é submetido em meio aos arranha-céus e às inovações arquitetônicas (entre outras) que competem entre si em vários pontos do planeta.


Este livro é um esforço de decifração do enigma socioeconômico-político-cultural do futuro (que mistura utopia e distopia em doses variáveis), convidando à aventura de viver e de entender/explicar/discutir, sem desconsiderar perigos, sondáveis e insondáveis, e sem negar, portanto, um certo temor com cheiro de fim de mundo, talvez dissipável (pelo menos o odor, de imediato) se rumos coletivos forem redefinidos sem perder de vista que "As cidades, como os sonhos, são construídas por desejos e medos..." (CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. Trad. Diogo Mainardi. São Paulo: Folha de São Paulo, 2003 - doravante fonte de todas as citações, entre aspas, exceto quando outra for mencionada).


"O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos [em nossas cidades visíveis e invisíveis]. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço [e dar-lhe tempo]."


É por se encontrar entre os que escolheram a segunda das opções acima que o autor deste livro decidiu escrevê-lo, na esperança, talvez vã, mas ainda assim, esperança, de diálogo com outros que adotam a mesma postura e, quiçá, também com os alinhados à primeira opção, convidando-os à mudança, convidando-os a buscar a felicidade seguindo o caminho oposto ao que trilham, por ser este mais autêntico e emancipador.


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A partida (Introdução)


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O futuro não é o tempo que virá: ele é o tempo que está vindo. Sua semente, no solo do tempo eterno (e que o homem, que é finito/temporário, experimenta aos pedaços: passado-presente-futuro), está amalgamada no presente, assim como as folhas mortas do passado, espécie de fertilizante de que se beneficia o momento em curso. O futuro, não se duvide, "tem o pé" no agora, e jamais pisou tão firme como nas primeiras décadas do século XXI.


No agora do século XXI, ao final de seu primeiro quartel, cidades árabes e cidades chinesas estão esboçando, já, no espaço geográfico que ocupam e transformam com uma radicalidade inusitada, um futuro que, por um lado, não é o mesmo engendrado pela Velha Europa nem pelo Novo Mundo (estadunidense), mercantil-capitalista, democrático de massas, judaico-cristão; e que, por outro lado, entretanto, parece se afunilar para uma espécie de ocidentalização redesenhada, com traços de islamismo amainado (caso os xiitas saiam derrotados na Península Arábica) e de capitalismo amansado (se o modelo chinês não desmoronar e vier a ocupar o lugar da "utopia possível", hoje nas mãos dos gestores social-democratas/keynesianos do Estado do bem-estar social dos Países Nórdicos).


"De uma cidade, não aproveitamos as suas sete ou setenta e sete maravilhas, mas as respostas que dá às nossas perguntas." Assim, viajar pelas cidades visíveis da Península Arábica e da China, prestando atenção ao que nelas ocorre em termos de modos de vida, estilos de vida e jeitos de viver, permite vislumbrar o futuro que elas estão esboçando, e faculta, adicionalmente (objetivo deste livro), transformar a tríade modo de vida-estilo de vida-jeito de viver num construto mental (para não dizer teórico, que seria algo somente científico-razão, quando é também literário/arte-emoção) com poder explicativo complementar ao de modo de produção (Marx) - aceitando-o, mas considerando que a poderosa visão do materialismo histórico não chega ao ponto de captar a existência individual com todas as suas nuances mutáveis.


Viajemos! Adentremos as vias, as praças, as edificações das novas cidades visíveis e também os labirintos escorregadios da mente (parte do corpo humano misterioso) em busca das cidades ainda invisíveis (apenas esboçadas) que a semente do futuro, germinando no presente, está trazendo à luz na Ásia, neste lusco-fusco gramsciniano que o mundo ora atravessa.


Oxalá não se aplique ao nosso caso, na volta, a recriminação do Grande Khan ao viajante veneziano: "Retornou de países (...) distantes e tudo que tem a dizer são os pensamentos que ocorrem a quem toma a brisa noturna na porta de casa. Para que serve , então, viajar tanto?"




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II - As cidades visíveis árabes



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Na Península Arábica, a economia petrolífera propiciou, a partir dos anos 1960-70, o surgimento de sete cidades hoje mundialmente visíveis, seis delas capitais de seus países (Kuwait, Manama, Doha, Abu Dhabi – no Golfo Pérsico, Mascate – no Golfo de Omã e Riad – única fora da costa litorânea) e uma não-capital, mas importante sítio portuário, comercial, financeiro e turístico dos Emirados Árabes Unidos (Dubai). Saná, capital do Iêmen, distante aproximadamente 130 km do Mar Vermelho, é uma cidade visível por motivo distinto do desenvolvimento acelerado e da decorrente sofisticação urbanística e arquitetônica das outras capitais e de Dubai. Sua proximidade do Estreito de Bab el Mandeb, porta de entrada do Mar Vermelho vindo do Mar da Arábia e do Golfo de Áden, para chegar ao Canal de Suez – rota de comércio vital para o Ocidente – dá a ela uma posição estratégica, da qual, porém, não tem conseguido se aproveitar, por estar o Iêmen mergulhado numa guerra civil com ingredientes de confronto velado (não tanto) entre potências locais e globais, que descambou numa tragédia humanitária de difícil solução.

           

A visibilidade das cidades árabes-petrolíferas permite espreitar, dado o modo de vida que seu padrão de desenvolvimento engendra, um futuro socioeconômico específico, que é objeto de especulação na conclusão no diário de viagem por elas. Ao passo que a situação de conflito duradouro e insolúvel, com o decorrente mergulho da população na extrema miséria, no Iêmen, obriga a uma reflexão acerca das trágicas consequências da desagregação social e da perda de governabilidade/governança onde o Estado e as instituições da sociedade civil desaparecem ou perdem funcionalidade, abrindo espaço para que os mais variados tipos de aventureiros e grupos de interesse, locais e estrangeiros, ocupem os espaços de poder para impor sua vontade, à revelia do interesse coletivo e do bem-estar geral. Nesse sentido, o que o caso iemenita oferece é a plena visibilidade de um risco de retrocesso civilizatório que o passado e o presente, com todos os seus feitos tecnológicos, socioeconômicos, políticos e culturais admiráveis, ainda não conseguiram banir do horizonte futuro.


  1. Doha

    "Eis o que se conta a respeito de sua fundação: homens de diferentes nações tiveram o mesmo sonho... (...) Após o sonho, partiram em busca daquela cidade; não a encontraram..."


  2. Saná

    "É o seu próprio peso que está esmagando o império..."


  3. Mascate

    "(...) em certas horas, em certas ruas, surge a suspeita de que ali há algo de inconfundível, de raro, talvez até de magnífico..."


  4. Manama

    "A qualquer hora do dia, levantanto os olhos através dos encanamentos, não é raro entrever uma ou mais jovens mulheres, esbeltas, de estatura não elevada, estendidas ao sol dentro das banheiras, arqueadas debaixo dos chuveiros suspensos no vazio, fazendo abluções, ou que se enxugam, ou que se perfumam, ou que penteiam os longos cabelos diante do espelho."


  5. Kuwait

    "Convictos de que cada inovação na cidade influi no desenho do céu, antes de qualquer decisão calculam os riscos e as vantagens para eles e para o resto da cidade e dos mundos."


  6. Abu Dabi

    "Viajando percebe-se que as diferenças desaparecem: uma cidade vai se tornando parecida com todas as cidades."


  7. Dubai

    "POLO: (...) os carregadores, os pedreiro, os lixeiros, as cozinheiras que limpam as entranhas dos frangos, as lavadeiras inclinadas sobre a pedra, as mães de família que mexem o arroz aleitando os recém-nascidos, só existem porque pensamos neles.

    KUBLAI: Para falar a verdade, jamais penso neles.

    POLO: Então não existem.

    KUBLAI: Não me parece ser esta uma conjetura que nos convenha. Sem eles, jamais poderíamos continuar balançando encasulados em nossas redes."


  8. Riad

    "As cidades também acreditam ser obra da mente ou do acaso, mas nem um nem outro bastam para sustentar as suas muralhas."


    O futuro esboçado pelas cidades árabes



III - As cidades visíveis chinesas



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A China é a potência global que, paulatina e consistentemente, desde o final do século XX, mudou o cenário econômico e geoestratégico antes inquestionavelmente dominado pelos Estados Unidos (principalmente) e pela União Europeia (desde o Tratado de Maastricht, de 1993). Sua plena ascensão praticamente coincide com o fim da Guerra Fria, com a derrocada da União Soviética no final de 1991 e o espocar da chamada globalização neoliberal, combinada com um mundo dito multipolar.


Desde as Quatro Modernizações (reformas nos âmbitos da agricultura, da indústria, da defesa nacional e da ciência e tecnologia) concebidas e iniciadas em 1978 pelo Partido Comunista Chinês (sob a liderança de Deng Xiaoping e na contramão da visão de Mao Tsé-Tung) que levaram a uma abertura política sem precedentes e a uma política econômica com ampla e rápida adesão da iniciativa privada e do capital estrangeiro, a China protagoniza o que vem sendo conhecido como socialismo de mercado (ou modelo chinês de socialismo), de que resultou um surto desenvolvimentista no qual imensas, modernas e vibrantes cidades são talvez a expressão mais impressionante, uma vez que parecem ter surgido repentinamente e com um vigor nunca antes visto, nem mesmo na experiência soviética de crescimento acelerado, de Norte a Sul e de Leste a Oeste do país, interligadas por vastas redes rodoviária e ferroviária (principalmente, e com sofisticados trens de alta velocidade).


A todo momento, viajando pela China, pensava/sentia: "(...) me encontro neste momento sem um aqui nem um lá e sou reconhecível como estrangeiro por não estrangeiros..." (CALVINO, Italo. Se um viajante numa noite de inverno. Trad. Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1999)


São muitas as cidades chinesas visíveis, e que dão visibilidade ao modelo chinês, entre elas as seguintes, escolhidas sem critérios específicos (a não ser a vontade do viajante de percorrer uma certa rota), mas entendidas como suficientemente representativas do que ocorre na China.


  1. Zhuhai

    "Para distinguir as qualidades das outras cidades, devo partir de uma primeira que permanece implícita. No meu caso, trata-se de Veneza."


  2. Hong Kong e Macau

    "A cidade aparece como um todo no qual nenhum desejo é desperdiçado e do qual você faz parte, e, uma vez que aqui se goza tudo o que não se goza em outros lugares, não resta nada além de residir nesse desejo e se satisfazer."


  3. Shenzhen

    "O catálogo de formas é interminável: enquanto cada forma não encontra a sua cidade, novas cidades continuarão a surgir."


  4. Chongqing

    "(...) cidade enganosa, tem um poder, que às vezes se diz maligno e outras vezes benigno: se você trabalha oito horas por dia como minerador de águatas ônix crisoprasos, a fadiga que dá forma aos seus desejos toma dos desejos a sua forma, e você acha que está se divertindo..."


  5. Shanghai

    "Em toda a sua extensão, a cidade parece continuar a multiplicar o seu repertório de imagens..."


  6. Beijing

    "Mas a cidade não conta o seu passado, ela o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos da rua, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas..."


  7. Shenyang

    "Eu deveria enumerar as mercadorias que aqui se compram a preços vantajosos: ágata ônix crisópraso e outras variedades de calcedônia..."


    O futuro esboçado pelas cidades chinesas




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V - Modos de vida, estilos de vida e jeitos de viver: o indivíduo e a sociedade sob a lente do mesoscópio

 

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O que se observa em termos de modos de vida, estilos de vida e jeitos de viver nas cidades visíveis aqui consideradas pode ser tentativamente conceituado conforme segue.

 

Modo de produção e modos de vida

 

O capitalismo é um modo de produção, como teorizou Karl Marx (1818-1883), com grande e duradouro impacto, desvendando o funcionamento da sociedade de classes que se desenvolve por meio da acumulação de capital, que é uma forma de exploração do trabalho sem coação direta (como no escravismo) ou vinculação por descendência (como no feudalismo), que o sistema de trocas (mercado) viabiliza e disfarça.

           

O capitalismo tornou possível a mobilidade de classes. Enquanto nos tempos feudais nobres e plebeus nasciam e morriam nobres e plebeus, na era capitalista a classe em que alguém nasce não necessariamente será aquela em que morrerá: tanto um operário pode vir a ser capitalista (ainda que geralmente pequeno), quanto um capitalista pode perder esta condição se não mantiver operando corretamente as engrenagens do capital sob seu comando.

           

Sob o capitalismo, portanto, os modos de vida (conceito que é neste ensaio apresentado) não se limitam aos quatro existentes na fase histórica anterior do desenvolvimento econômico, a saber: nobre e plebeu (modos de vida básicos), monástico e militar (modos de vida derivados). Uma vez tornados sustentáveis (por meio da acumulação de capital ou da oferta de força/habilidade de trabalho), diferentes modos de vida podem ser vivenciados/experimentados, no capitalismo, retendo uma relativamente numerosa classe média (grande novidade desse modo de produção) a capacidade de inovar nesse tocante.

           

O modo de vida é uma espécie de nicho no universo do modo de produção. E a ele se liga, como aspecto mais aparente, um estilo de vida. A realidade última/verdadeira de um indivíduo localiza-se na sua condição de classe – é herdada, não escolhida, de início; o seu modo de vida diz respeito ao nicho em que ele consegue se colocar, no desenrolar de sua existência, para usufruir ou sentir-se usufruindo a melhor vida possível dentre as que lhes são acessíveis – o modo de vida é conquistado (se não herdado), mediante trocas mercantis e relacionamentos sociais.  Já o estilo de vida, é uma imagem que se pretende passar de si aos outros, não raro o indivíduo iludindo-se a si mesmo com ele.

           

Vale registrar claramente a diferença: a classe é uma condição decorrente do lugar ocupado no modo de produção, enquanto o modo de vida (opção feita diante do leque de possibilidades de acordo com a condição de classe) e o estilo de vida (imagem construída com a finalidade de ser visto pelo outro conforme se deseja) são os elementos que se combinam, sempre conflituosamente, na psique e nos relacionamentos interpessoais e sociais, sustentando uma opção existencial.

           

Na economia mercantil contemporânea, seja ele capitalista – com maior ou menor grau de regulação estatal – ou algo como o “socialismo de mercado” chinês, sob a lógica da acumulação de capital (mesmo de capital financeiro), cinco são os modos de vida possíveis: multimilionário, rico, classe média, pobre, miserável.

           

Cada um desses modos de vida se define quantitativamente, em função do patrimônio e/ou da renda do indivíduo considerado. Há um nível absoluto e um nível relativo para cada um. O absoluto é o definido globalmente: neste nível, o multimilionário é aquele que figura na lista de algumas dezenas de extremamente ricos existentes no planeta. No nível relativo, os multimilionários são os detentores dos maiores patrimônios em cada país. Os demais modos de vida obedecem à escala decrescente, até chegar ao miserável, que não tem patrimônio significativo e sua renda é nula ou tão pequena que não lhe garante mais que (ou sequer) o sustento diário.

           

Os extremos da escala de modos de vida (multimilionários e miseráveis) são uma espécie de desvio (útil à exploração e à dominação pelos que comandam o processo de acumulação de capital) do objetivo teórico do sistema de trocas, que é viabilizar a cooperação “voluntária” (no sentido de não obtida pela força, como no escravismo) entre os agentes econômicos para obter a produção de riqueza material e distribuí-la conforme a hipotética contribuição de cada um. Se o sistema mercantil/liberal funcionasse perfeitamente ou com imperfeições não exageradas do ponto de vista da distribuição da produção obtida com a participação de todos, não haveriam multimilionários nem miseráveis. Mas não é isso que efetivamente acontece, como demonstram a História e os dados da economia atual, na qual, aliás, parece haver concomitância entre fortunas pessoais/familiares bilionárias e bilhões de famílias na pobreza absoluta.

 

 Estilos de vida

 

Um estilo de vida é um modelo que inspira o jeito de viver concreto de um indivíduo, influenciando (profunda ou superficialmente) a visão que tem do mundo e de si, seu comportamento, suas atitudes, os traços que marcam seus relacionamentos com os outros, suas decisões, suas ações.

           

Raríssimos são (se é que existem) os indivíduos aos quais não é possível atribuir um estilo de vida preexistente ao seu. Mesmo no caso daqueles que “inventam” novos estilos de vida, não o fazem com total independência das vitrines e do catálogo de estilos ao qual eles acrescentam novos itens. Esses novos itens acabam por carregar elementos de estilos anteriores, acrescentando-lhes ou retirando-lhes algo. Isso porque por mais autêntico e inovador que alguém possa ser, o estará sendo em inevitável interação com os demais. A vitrine e o catálogo sempre pesam, seja muito, seja pouco.

           

A principal vitrine de estilos de vida é a cidade; o mais detalhado catálogo é aquele oferecido pela literatura e, mais recentemente, pelo cinema e pela televisão (sucessores tecnológicos do teatro). Na primeira, vivem materialmente os seres humanos; na segunda se movimentam os personagens: tipos “inventados” a partir da cidade, que, por um lado, se inspiram na vida real e, por outro, a inspiram. Com o advento da publicidade e da propaganda, a serviço do mercado, cidade (vitrine) e literatura/teatro/cinema/TV (catálogos, a que podem ser acrescidos o rádio e aparatos da internet) oferecem estilos para vender mercadorias que ajudam a compô-los concretamente. O que significa que todo jeito de viver traz em si fragmentos de estilos de vida adotados ao sabor das compras que o indivíduo realiza no mercado, em geral influenciado pela propaganda veiculada nas mais diversas mídias. Ninguém, portanto, numa realidade mercantil, é o que inventou ser, mas uma combinação de estereótipos oferecidos aqui e ali, na vitrine e nos catálogos em que consistem a cidade e as formas culturais/artísticas.    

             

Tendo em vista que qualquer estilo de vida é viável somente na medida em que possam seus adeptos sustentá-lo economicamente, fica claro que nem todos podem escolher livre e desimpedidamente o estilo de vida que lhe parece o mais conveniente ou desejável, pois estando no nicho do modo de vida miserável, por exemplo, um indivíduo não tem como acessar estilos sustentáveis apenas por quem esteja no nicho do modo de vida de classe média. Aos mais ricos abrem-se maiores oportunidades; aos mais pobres restam as opções menos onerosas. Nem se imagine a possibilidade de um operário adotar o modo de vida de turista perpétuo, indo de cidade a cidade em diferentes países, pois o trabalhador pode, quando muito, realizar uma ou outra viagem barata de tempos em tempos. Mas ele pode, entretanto, em vez de se tornar um religioso caritativo com vida familiar padrão, optar por ser um solteirão boêmio, perdido (e encontrado) nas noites dos finais de semana.


As vitrines e os catálogos de estilos de vida contêm um número finito, embora muito extenso, de possibilidades, variando (e combinando-se entre si) conforme os aspectos postural, relacional e modelar.


É difícil esgotar a lista de tipos (tendentes a duplas de opostos) de estilos de vida. Relacionalmente, um estilo de vida pode ser introvertido ou extrovertido, altruísta ou egoísta, humilde ou prepotente, discreto ou ostensivo etc. Posturalmente, pode ser encaixado (integrado ao sistema/regime, satisfeita ou resignadamente), desencaixado (podendo manifestar-se como bandido ou revolucionário, conforme queira arrancar o seu quinhão à força, à revelia do sistema/regime, ou mudar o sistema/regime para que todos possam ter o seu), flutuante (observador de cima ou indiferente) ou submerso (anulado pelas circunstâncias). Modelarmente falando, os perfis existenciais imediatamente visíveis nas vitrines e nos catálogos, variam com o “caminhar” da História. Alguns deles, entretanto, têm quase uma invariabilidade no tempo, por expressarem situações que se repetem com leves variações nos diferentes modos de produção e modos de vida historicamente verificados, como, por exemplo os estilos do sacerdote/monge, do guerreiro/militar, do líder/político, do pensador/intelectual, do artista e do desportista, por serem estilos básicos encontrados ao longo de toda a aventura humana, desde os primórdios até, provavelmente, o fim dos tempos, pois se relacionam a fazeres definidores da condição humana. Mais ou menos em torno, e dinâmica e combinatoriamente, desses estilos básicos, giram os estilos que podem ser chamados de profissionais, que configuram as escolhas possíveis frente à inexorável questão: “O que você quer ser quando crescer?”, refeita mais tarde assim: “Você está sendo o que deseja ser?” ou, com o furacão de mudanças contemporâneos: “Está sendo possível continuar sendo o que você, querendo ou não, quis ser e está sendo, para sobreviver?”. As profundas diferenças entre os estilos de vida de um médico e de um pedreiro, de uma atriz e de uma empregada doméstica, de um(a) astronauta e de um(a) condutor(a) de táxi de aplicativo ilustram o quanto escolha profissional e estilo de vida estão diretamente relacionados, ao mesmo tempo em que indicam a relação entre estilos de vida e modos de vida.

           

Os estilos de vida manifestam-se em diversos âmbitos da existência concreta dos indivíduos na cidade (entendida esta não como a área urbana, mas como o todo que articula funcionalmente a área urbana e a rural num único mercado). Estes âmbitos são, sem pretensão de esgotá-los: o do morar (estilos urbanísticos, paisagísticos e arquitetônicos), o do locomover-se, o do vestir-se e adornar-se (moda, em termos de vestuário, joalheria, perfumaria, fitness), o do alimentar-se (nutrição, culinária, gastronomia), o do lazer/entretenimento, o da socialização (espaços públicos, bares, clubes etc.) etc.         


Os estilos de vida estão diretamente relacionados a mentalidades (modos de ver) focadas em valores, desejos (mais do que em necessidades), tabus etc., presentes na cultura prevalecente, emergente ou “proibida”, convivendo entre si harmônica ou conflituosamente, agitando mais ou agitando menos a cidade, conforme sejam os momentos de mudanças ou de acomodações entre os agentes/atores que encarnam os modos e estilos de vida, nos seus jeitos de viver.

 

Jeitos de viver

 

Na escolha de qualquer opção existencial, que sempre dialoga com um estilo de vida, conta/vale o desejo (estritamente individual), mas sem que este, em busca de materializar-se, respeite limite sociais, econômicos e políticos (modo de produção e modos de vida), não passará de sonho vão. Nele insistir resultará em frustração, tristeza, infelicidade – malogro doloroso. O jeito de viver é uma construção em que desejo/vontades individual labuta e batalha contra impeditivos colocados pelo mundo, pelos outros.  

           

É conveniente explorar um pouco mais esta afirmativa. Ela deve levar à percepção de que duas forças estão em confronto na quotidianidade de uma existência humana. De um lado, está a moldura social geral (o modo de produção), que limita o quadro (a pintura) por ela contida e sustentada (os modos de vida possíveis sob um determinado modo de produção). De outro lado, está o desejo do indivíduo quanto a como gostaria de viver face às opções que consegue vislumbrar diante de si, num dado momento, que é, ao mesmo tempo, um momento histórico (momento coletivo) e um momento psicológico (momento individual: fase da vida/idade, dilemas e problemas enfrentados, questões existenciais colocadas etc.). Em apenas duas expressões: o dado coletivo (social) e o dado individual (pessoal), um frente ao outro.

           

Se há duas forças e elas devem produzir um resultado para o indivíduo (que é a vida por ele vivida, afinal), a interação entre elas levará a uma situação de equilíbrio (temporário, com maior ou menor duração): a este equilíbrio se pode denominar momento existencial. Trata-se de um jeito de viver que é uma escolha feita sob os constrangimentos sociais que lhe colocaram limites. Ou seja, o indivíduo vive não do jeito que sonha/deseja, mas o mais próximo disso que pode chegar diante das opções de modo de vida disponíveis naquela específica configuração histórica de um modo de produção e de modos de vida sob o qual ele se encontra.

           

O jeito de viver corresponde a um arranjo entre os desejos/sonhos individuais e as restrições socioeconômicas, política e culturais que configuram os modos de vida. Este arranjo é viabilizado pelo indivíduo no âmbito de suas relações com os outros. Quanto mais amplas essas relações, mais o indivíduo vislumbra possibilidades (maior o repertório de sonhos que pode ter); ao mesmo tempo, mais diversificada a vitrine de estilos de vida que pode ver, para que se possa almejá-los ou não. O grau de ambição de cada um e a capacidade de agir em busca do que se coloca como meta de vida, percorrendo um caminho (um trajeto relacional) ao longo do tempo (de vida) influenciará o jeito de viver.

           

O jeito de viver é, pois, um construto, cujo artífice é o indivíduo, partindo de projetos que é capaz de conceber e dos “materiais de construção” que recebe (da família, por exemplo) ou conquista (com o exercício de uma profissão, por exemplo), ao longo das fases da vida. Os mais bem aquinhoados se beneficiam de pontos de partida favoráveis: recebem materiais (heranças) e concepções (cultura) alavancadoras, o que não acontece com os de menor sorte. Mas tanto num caso como noutro, o jeito de viver de que se partiu não necessariamente (aliás, raramente) será o mesmo ao longo de toda a vida. Isso fica mais claro quando se percebe que jeito de viver é algo que dá margem a muita criatividade e iniciativa, não obstante as limitações colocadas pelos modos de vida (que são somente cinco, como já visto).

           

O jeito de viver é o âmbito da existência humana no qual fica preservado algum grau de liberdade individual face à realidade coletiva de que todos fazem parte, posto que o jeito de viver pode, inclusive, confrontar os modos de vida predominantes (embora nunca suplantá-los: por isso se diz “algum grau” de liberdade individual e não simplesmente liberdade). Por exemplo, a vida monástica, isolada, meditativa, é um jeito de viver, que pode ser vivido mesmo diante dos estilos de vida predominantes no mundo atual, em que a afirmação individual afasta como indesejável o estilo de vida de monge.


Como se articulam modo de vida, estilo de vida e jeito de viver? Talvez fique claro utilizando-se um exemplo literário: Almas mortas (1842) de Nikolai Vasilievich Gogol (1809-1852). Há na narrativa o modo de vida dos nobres, dos pobres e dos servos (as almas). Donos da terra, os nobres são tão mais poderosos quanto mais almas (servos) declaram (no censo periódico) existir sob seu domínio, em suas glebas. Portanto lhes convém, para se afirmarem nas relações de poder, declarar o maior número possível de almas em suas propriedades. Mas, como pagam tributos sobre essas cabeças, economicamente lhes é vantajoso declarar o menos possível. É nessa brecha que se insere Pável Ivánovitch Tchítchicov, um proprietário de almas mortas. Ele as “compra” por migalhas e, possuindo-as (sem as possuir, de fato), torna-se um proprietário, com base em quê, adota um estilo de vida (nobre) que dá materialidade a seu jeito de viver: um jeito de viver cujo estilo de vida é insustentável, porque pertence a um modo de vida que Tchítchicov não dá conta de sustentar. Seu jeito de viver é uma mentira para a sociedade e também para ele. Mas é uma escolha que ele viabilizou, dela colhendo a tanto a dor como a delícia desse seu jeito de ser.

           

A sociedade do espetáculo e do consumo, que o capitalismo configurou e chega a seus extremos no século XXI, está eivada de Tchítchicovs, vivendo de aparências, aparências que enganam inclusive a eles mesmos, conduzindo-os ao abismo. O desafio para escapar dessa armadilha, desse canto de sereia permanente, é buscar um jeito de viver autêntico (seja conformista, seja questionador) em que modo de vida, estilo de vida e jeito de viver estejam articulados entre si de uma maneira própria, sem deixar de perceber e considerar os limites a este “próprio” quando se está condenado a viver a vida inteira com os outros, uns mais próximos, outros mais distantes.  Ao sucesso na lida com este desafio assumido por quem deseja/aceita viver autenticamente corresponderão sucessivos momentos existenciais, numa escalada (sempre sujeita a retrocessos) em que se pode colher o sabor (nem sempre doce) da própria vida, vivida sem qualquer intenção de imitar a de quem quer que seja, não obstante a autenticidade plena/total não seja algo atingível pelo ser humano.

 

O mesoscópio: para ver além e entre o micro e o macro

 

Modo de produção, modo de vida, jeito de viver: conceitos que, relacionados entre si, permitem entender a existência no âmbito meso, ou seja, entre o micro e o macro. Enquanto modo de produção e modo de vida dizem respeito ao macro (as relações sociais determinantes das possibilidades existenciais dos indivíduos), jeito de viver tem a ver com a manifestação concreta, quotidiana, da vida individual, consideradas as relações interpessoais nela envolvidas.

           

Quando se considera apenas modo de produção e modo de vida, o indivíduo se assemelha a uma marionete das forças macro (resultante coletiva) da História, ficando a impressão de que ele não faz história, sendo uma espécie de subproduto da História. Por outro lado, quando modo de produção e modo de vida são desconsiderados, o indivíduo é reificado; mas trata-se de um falso rei, com trono, mas sem reino – preso no âmbito micro, invisível no plano macro.

           

Na realidade, o indivíduo e o coletivo (a biografia e a História) se emaranham no nível meso. A realidade não existe só no micro ou só no macro – ela ocorre no emaranhado entre micro e macro, articulada pelo meso. Os conceitos de modo de vida, estilo de vida e jeito de viver se só fazem sentido partindo-se deste fato. E é este ponto de partida que os tornam reveladores de aspectos da existência (coletiva e individual) que abordagens macro e micro isoladas não conseguem alcançar.

           

Quando se olha para o macro (telescópio), modo de vida vai além de modo de produção ao considerar a vida individual não a partir da condição “seca” de classe, mas da condição individual dentro de uma classe, condição esta que não faz de ninguém simplesmente burguês ou operário, mas variantes concretas (em geral intermediárias) entre um e outro desses sujeitos-tipo.

           

Quando se olha para o micro (microscópio) parte-se do indivíduo, a partir do seu jeito quotidiano de viver – é aí que se localiza a vida concreta, vivida, experienciada. Mas o olhar fica embaçado no que tange ao macro: ganha-se em realismo local/individual e perde-se em realismo geral/coletivo.


É preciso, pois, para não perder de um lado enquanto se ganha de outro, em acesso à realidade, utilizar um potencializador do olhar (mental): o mesoscópio, cujas lentes são ajustadas de tal modo que fazem convergir micro e macro para permitir que se veja a realidade de um terceiro modo.

           

Como funciona o mesoscópio? Ele é uma “lente” que age entre o ampliar e o reduzir, entre o afastar e o aproximar. Serve para focalizar a essência de uma vida humana sem desfocar totalmente os acidentes que necessariamente a afetam. Em outras palavras, tenta identificar o “centro de gravidade” de uma experiência existencial específica. Exemplos ajudam a esclarecer a ideia.

           

João é dono de uma empresa de grande porte líder de mercado em seu segmento. Pelo recorte de modo de produção, é um capitalista/burguês. Seu modo de vida, entretanto, não é a de um tipo puro desta classe. De origem humilde, ascendeu aproveitando uma oportunidade de inovação a partir de sua experiência profissional precedente. Isso influenciou sua mentalidade, seu comportamento e suas atitudes. Foi capaz de vacinar-se contra a ideologia do novo rico. Quem com ele trava relações fora do ambiente empresarial o toma facilmente por alguém de classe média, que não se deslumbra com o tanto que se coloca à sua disposição em termos de consumo; tampouco identifica nele as manifestações dos orgulhosos self-made men. Embora possa ser uma agulha no palheiro, é um exemplo de modo de vida identificável pelo mesoscópio, digno de entrar na lista de tipos possíveis de materialização concreta. Seu jeito de viver não é o do empregado de indústria de sua juventude, nem o do empresário bem-sucedido de sua maturidade. Tendo conquistado liberdade financeira (condição de bancar suas despesas sem ter que destinar tempo, antes, empreendendo ou trabalhando, para obter o dinheiro com que comprar o que necessita/deseja) e, portanto, podendo viver tal como deseja, escolheu uma existência centrada na família e na filantropia. Gastando pouco tempo para coordenar a equipe de profissionais que, de fato, põe em movimento seu capital, destina a maior parte das horas de seus dias a conviver e colaborar com mulher e três filhos, pai e mãe, três irmãos e cinco sobrinhos. Desempenha papel relevante em entidades assistenciais e contribui significativamente no traçado e implementação de políticas sociais em sua cidade, assim como em algumas em nível federal. Seus movimentos e relacionamentos quotidianos dão provas de que seu jeito de viver é o de um empreendedor social, pois o centro de gravidade de sua experiência existencial o levou de um jeito de viver típico de empregado industrial para o de um empregador industrial e, por fim, ao de um militante de causas sociais (sem recorte político-ideológico) que prima pela “ordem familiar”, buscando fortalecer na sociedade as condições para evitar a desagregação desta célula básica da estrutura social (ideia mobilizadora de seu jeito atual de viver).

           

O centro de gravidade do jeito de viver de José é a busca de autoafirmação e prazer na sua condição de homossexual, objeto de preconceito e não raro de ataques não apenas verbais. Também empresário de sucesso, mas de negócio herdado da família, é solteiro. Conduzir a holding com filiais em vários países lhe toma boa parte da vida e ele o faz com mão de ferro e gosto pela visibilidade midiática. Mover-se sem restrições pelo mundo afora é o que lhe faz bem. Geralmente vai a negócios, mas estes lhes tomam, em geral, um quarto do tempo, apenas. Entre negociar (para sobreviver) e explorar aspectos da vida que lhe agradam (viver), José encontrou o lugar de sua existência. O macroscópio (recorte social, de modo de produção), o identifica como capitalista; o microscópio (recorte existencial, de modo de vida) o considera um milionário típico, colocando a riqueza a serviço do próprio prazer; o mesoscópio capta um dado que os dois instrumentos não permitem ver: um jeito de viver que, conscientemente ou não, busca poder e ostentação como escudos contra a discriminação.

 

As experiências existenciais na cidade, sob a lente do mesoscópio

 

Desses dois exemplos pode-se derivar a noção de mesoscópio como um “aparelho” com lentes especiais, que não se limitam a focar o macro (condição social, com seus jogos de interesses) e o micro (condição individual, com seus problemas, dilemas e, também, enigmas): um “aparelho” mental/intelectual/sentimental que busca ir além, não obstante todas as dificuldades metodológicas para isso. É neste além do micro e do macro que o mistério da vida se esconde, na condição de enigma de cada um face aos demais (sociedade) e ao mundo (natureza). Enigma tão profundamente pessoal que nem biografia nem História podem decifrar por completo; enigma cuja essência cada um carrega do nascimento à morte, levando consigo para o túmulo; enigma tão profundo quanto aquele que diz respeito ao sentido da vida que se destina inexoravelmente à morte.

           

Outros exemplos que poderiam ser apresentados, de gente pobre e de pessoas de classe média (outros dois modos de vida, além daquele dos ricos de que João e José são representantes), pouco acrescentariam aos argumentos. Mesmo assim, em outra ocasião serão explorados.

 

Sob o olhar mesoscópico aqui proposto, cidades, modos de vida, estilos de vida, jeitos de viver podem ser percebidos como conceitos/dimensões possuidores de potencial para revelar novos contornos e conteúdos da realidade, tanto individual como social.  

A cidade, desde que surgiu, é a face imediatamente visível daquilo em que resulta a interação humana no que constitui a sociedade, que é a expressão da vida coletiva organizada, administrada, legalmente parametrizada - civilizada. É nela, na cidade-sociedade (uma fração do mundo de cidades interligadas), nesse meio múltiplo e multifacetado, sempre marcado por contradições e conflitos, que o indivíduo encontra o seu jeito de viver, que nada mais é do que um arranjo entre o que lhe vai no íntimo (desejos e aspirações, medos e temores, tabus e preconceitos, limitações e patologias etc.) e o que permite e nega o meio (social, ambiental, cultural) em que está vivendo, o qual funciona como moldura (impondo limites, padrões, obrigações etc.) para o quadro (existência) que será o seu, nunca de sua exclusiva autoria, já que todo jeito de viver emula - quando não cria, o que raramente acontece - um estilo de vida, espécie de quadro inspirador dos jeitos de viver. Os estilos de vida são expostos em compartimentos separados, na galeria existencial, conforme pertençam a uma das categorias de modos de vida: multimilionário, rico, classe média, pobre, miserável; ninguém desejando os dois últimos, mas a imensa maioria não escapando a seus traços e cores. Os modos de vida derivam de um dado modo de produção, concreto/histórico, tal como concebido por Karl Marx (no que tange ao processo produtivo e, parcialmente, à distribuição da riqueza) e complementado por John Maynard Keynes quando este explica a função da moeda (função inclusive fortemente redistributiva e limitadora/potencializadora do crescimento econômico), resgatando-a do fundo do poço em que Marx a havia deixado (mero véu a disfarçar o que é a verdadeira riqueza: o trabalho) e de onde Hilferding não foi capaz de resgatá-la.

Dentro da “normalidade” (desconsiderados os extremos – multimilionários e miseráveis) da economia de trocas impulsionada pelo “instinto” individual de acumulação – que Schumpeter justifica como zelo do acumulador com seus descendentes, Keynes aponta como precaução em relação ao futuro, e Marx denuncia como ganância de uma classe – movem-se os ricos, a classe média e os pobres. Estes, lutam pela sobrevivência e, garantida esta, por sonhos materiais que proporcionam confortos e prazeres por cuja busca onerosa sentem-se realizados.


Na conceituação marxista de modo de produção, os capitalistas (os ricos, proprietários dos meios de produção) e os operários (o pobres vendedores do pouco que têm: sua força de trabalho) são as classes fundamentais da economia e da sociedade mercantil sob a égide do capital; os miseráveis são o lumpen, resíduo desprovido de importância para a evolução histórica; a classe média é um amontoado de indivíduos nem para lá, nem para cá na contradição de classes fundamental que cabe à mobilização, organização e revolução dos trabalhadores (os pobres) superar, extinguindo a sociedade classista e chegando ao comunismo, com baldeação na estação do socialismo.


Com base no conceito de modo de vida, sem desconsiderar a existência de exploração e dominação, o capitalista não é, necessariamente, o detentor dos meios de produção (um fundo de pensão, por exemplo, pode sê-lo, reunindo aplicações financeiras de um condomínio de pessoas de classe média), assim como não há qualquer resquício do “capitão de indústria”, o sujeito que comanda diretamente a força de trabalho explorada – e não se trata apenas de colocá-lo no topo de da estrutura administrativa hierárquica que caracteriza a moderna corporação, pois simplesmente aquela função desapareceu tal como concebida até o século XIX. Da mesma forma, a expressão operário, atualmente, soa como caneta tinteiro, fogão a lenha, carruagem, camponês: figura no passado industrial, na era das tecnologias da informação.

           

A classe média atual, que em Marx é a classe sem feição, é, de fato, a que dá feição à economia e à sociedade contemporâneas, seja no capitalismo liberal americano, no capitalismo social-democrata finlandês/sueco/norueguês/dinamarquês ou no socialismo de mercado chinês. Prensado entre o desejo de ser rico e o risco incessante de se tornar pobre, o indivíduo de classe média é o que se movimenta para se manter à tona no mar de mercadorias que lhe são oferecidas para a manutenção de um padrão de vida consumista, necessário à sustentação da indústria de bens de consumo de massa apresentados pela propaganda como necessários e/ou distintivos. Sua felicidade baseia-se no consumo (tanto ostensivo quanto seu patrimônio e sua renda podem alcançar, a fim de parecer ombrear o rico), no espetáculo (lazer e entretenimento, o turismo internacional no topo da lista mais “nobre”) e nos esforços para “aparecer bem na foto” (moda, gastronomia, “cultura”).

           

Sem classe média, não há consumo de massa; sem consumo de massa, não há produção massiva e standardizada; sem produção massiva não há escala suficiente (compradores em grande número e empresas gigantescas que os abastecem) para que o capital produtivo acumule o suficiente para sustentar-se e deixar livre uma porção de riqueza a ser apropriada pelos intermediários, como os comerciantes e os especuladores financeiros, por exemplo. Não está claro que o desafio vencido pelos famosos “milagres econômicos” foi, sempre, a expansão das classes médias urbanas? Resta dúvida sobre isso observando o atual caso chinês?

           

A esta altura, convém esclarecer que a palavra classe, na expressão classe média, aqui, não significa classe no sentido marxista, pois é apenas um vocábulo para se referir a pessoas que, no conceito de modo de vida (que implica mobilidade, para cima ou para baixo), encontram-se no meio: não são pobres, nem ricas; tendem ora para cima, ora para baixo, como estando em uma gangorra. Não se trata, pois, de classe, nem no sentido “em si” (condição), nem no sentido “para si” (consciência da condição) – trata-se, mais, isso sim, de um grupo de indivíduos enfrentando uma situação existencial face a uma realidade coletiva/social que os obriga a se autoafirmar com base em valores que assimilam olhando para cima (para o modo de vida dos ricos), enquanto transitam por uma ponte que ameaça cair e derrubá-los no meio de outros indivíduos, cujo modo de vida temem e, muitas vezes, abominam. O medo e o desejo batem no peito do sujeito de classe média como a espora no cavalo: obriga a seguir em frente.

           

O modo de vida rico pode ser considerado, portanto, o ponto de chegada do sonho acalentado pelo indivíduo de classe média. Nele vai se aninhar, evidentemente, uma parcela pequena dos que partiram da classe média (tendo nascido nela ou a ela ascendido, por esforço, sorte ou uma combinação desses fatores). O tamanho dessa parcela depende fortemente de como o modo de produção funcionou abrindo ou fechando a porta de acesso de um compartimento (classe média) a outro (rico). A chave para abrir essa porta depende de muitos elementos ou de combinações de elementos que se manifestam na história econômica mundial e de cada nação.

           

O modo de vida pobre é o enfrentado pela maior parcela da população mundial e, também, da maioria dos países, variando conforme seja impulsionada para cima (classe média) ou para baixo (miserável). Sendo que o avanço tecnológico recente tem produzido efeitos assustadores: ao eliminar empregos tradicionais e não colocar outros no seu lugar, em número suficiente, este fenômeno tem dificultado a ascensão social e produzido desalento nas novas gerações. A probabilidade de uma geração alcançar melhor padrão de vida que a anterior (o filho tornar-se mais rico que o pai), antes um dado, nas economias mais desenvolvidas, há décadas deixou de se manifestar com força e clareza.  


A chegada e o horizonte (Conclusão)


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"Jamais se deve confundir uma cidade com o discurso que a descreve."

 

A cidade (urbano-industrial/de serviços) é, mais do que o lugar onde predominantemente se vive, o locus da produção-circulação e da distribuição da riqueza, que se movimenta sob o comando do sistema (supra-humano) que combina dinheiro (expressão da economia) e poder (expressão da política) para gerar as condições materiais objetivas no interior das quais as subjetividades, em busca de sustento e aceitação, são submetidas ao desempenho de papeis estereotipados, porque do contrário escapam às condições que as tornam funcionais à manutenção/perpetuação do próprio sistema socioeconômico-político-cultural.


As cidades visíveis são as que historicamente atingiram a maturidade no cumprimento desse papel, chegando à plenitude, no que tange ao cumprimento integral dessa função aglutinadora no interior de um esquema que combina modo de produção e regime político. Elas propiciam as formas concretas de segmentação dos modos de vida, oferecendo, assim, um portfólio específico de estilos de vida, que ensejarão os jeitos de nelas viver.


Percebe-se que as cidades visíveis árabes e chinesas são paradigmas de um futuro que não é o mesmo que emergiu na Europa e transbordou para os Estados Unidos (em declínio, "Sim, o império está doente e, o que é pior, procura habituar-se à sua doença."), apontando em direções diferentes no que tange à economia (capitalismo), à política (democracia) e à combinação entre ambas para a configuração de uma sociedade (mercado livre ou fracamente regulado e republicanismo/representação/sistema eleitoral como processos decisórios coletivos). Não obstante, nessas cidades observa-se uma tendência ocidentalizante no que concerne à organização da produção e das finanças, quanto à apropriação das tecnologias e, mormente e quanto à aceitação/adoção do consumo de massas e da cultura do espetáculo/entretenimento para nutrir corpos e almas no seu dia a dia. Assim sendo, as subjetividades se movem, na China e na Arábia, mantendo desejos estereotipados massificantes, propícios à produção de massas padronizada que é o filhote mais vigoroso do capitalismo combinado com democracia representativa sob grandes números. Necessário o reparo de que nas cidades árabes religião e elitismo dotam as concepções e as práticas de especificidades que precisam ser consideradas, diferenciando-as das levadas a efeito na China, onde a especificidade fica por conta de um Estado sob o socialismo real ali existente.


A cidade invisível que cada cidade visível esconde é uma só; não é vista apesar de ser evidente, óbvia. O que acontece é que em qualquer área urbana do século XXI - sob sistema capitalista (liberal ou de economia mista) ou "socialismo de mercado" e sob regime democrático, semidemocrático ou ditatorial – convivem mais ou menos harmonicamente multimilionário, ricos, classe média, pobres e miseráveis – todos arranjando seu jeito de viver. Os multimilionários transitam entre as cidades, sem considerar as distâncias: cada uma delas é um local de pouso e decolagem de suas aeronaves particulares. Os ricos usufruem a cidade, sem estar totalmente presos a uma. Os cidadãos de patrimônio e renda médios tentam seguir e imitar os ricos, o que muitas vezes leva a que se tornem pobres... Os pobres trabalham, produzem e agarram o que sobra na farra consumista que é a festa popular de qualquer lugar, acrescentada dos espetáculos e dos entretenimentos de uma "indústria cultural" que, esta, afeta também as camadas de maiores posses, mormente os esnobes filisteus. Os miseráveis sobrevivem sem lugar nem rumo, mendigando socorro que nem sempre vem. O que varia de uma cidade a outra é o peso relativo de cada um desses cinco modos de vida no conjunto populacional e a política que viabiliza a convivência entre os agrupamentos humanos que os configuram concretamente.


Nas cidades do século XXI não há classes tal como tradicionalmente entendidas, pois este conceito se tornou míope para explicar a realidade pós-industrial (e talvez também pós-urbana, como apontam os enclaves dos ricos na "cidade lá fora") – o que há são categorias sociais de acordo com os modos de vida, sem relação inequívoca com a propriedade dos meios de produção; também não há partidos no sentido convencional do conceito – o que há são aglomerados de interesses que reúnem sujeitos pertencentes a todo os modos de vida: verdadeiros "balaios de gato" eivados de arrivistas e alpinistas sociais; por isso esquerda, direita e centro, politicamente falando, são expressões que fogem ao que indica a bússola ideológica.


No mar de mercadorias que é a cidade, estas são "pescadas" de acordo com o volume da propriedade privada de cada um (abstraindo-se a existência de receita e despesa governamentais que transfira renda), podendo essas posses (na forma de bens físicos, de papeis do mercado financeiro ou mesmo dinheiro – mais o contábil que o físico) ser comparadas a barcos pesqueiros, a redes de pescar, ao arpão e ao anzol. Por mais hábil que seja um pescador que disponha apenas de um anzol, linha e vara ou mesmo um sofisticado molinete, ele jamais chegará a encher mais do que o seu modesto embornal.


Se as atuais cidades visíveis - em qualquer dos continentes - irão mudar esta realidade nada animadora, no futuro, é algo que não se pode prever. Mas fato é que a concentração de renda tem aumentado, em cada lugar do mundo e no mundo como conjunto, assim como as tensões, urbanas (nas cidades e entre elas) e geopolíticas (entre regiões e países). A pós-modernidade não só é líquida, como explicitou Zygmunt Bauman (1925-2017), ela também liquida, no mesmo sentido em que o policial truculento liquida o indivíduo que aborda. E o faz tantas vezes sem que haja punição ou simples reprimenda: os gritos dos oprimidos e explorados não vêm sendo mais ouvidos (quando são emitidos) e os protestos dos discordantes, além de minguar, não têm sido considerados de maneira politicamente eficaz e nem mesmo relevante. A pós-modernidade quase já liquidou a esperança no futuro e está colocando em seu lugar a sensação de fim de tudo, que tantas teorias e filosofias corroboram (vendendo exemplares de livros em abundância, na mesma estante em que são oferecidas obras de autoajuda): fim da história – Francis Fukuyama (1952-), fim da utopia – Russel Jacoby (1945-), fim do humanismo – Achille Mbembe (1957-), fim da democracia – Jean-Marie Guéhenno (1949-), fim até mesmo da propensão humana a pensar e a sonhar, a exemplo do que preconizam o fim da obra de literária em seu gênero romance, na ou fora da esteira de Theodor W. Adorno (1903-1969).


Talvez o melhor, para concluir, seja dizer que se não voltarmos, coletiva e globalmente, a "ter juízo", o que o futuro nos reserva é um mundo à imagem e semelhança de Saná, a mais dramática das cidades visíveis aqui mencionadas. E para isso não concorrerá uma revolução repentina, mas uma involução paulatina. Mas, afinal, o que é "ter juízo"? Calvino já ofereceu um bom ponto de partida para a resposta, e foi aqui citado anteriormente, posicionando-se sobre como lidar com o inferno (não-metafísico nem religioso). Também ajuda saber que "ter juízo" fica longe de negacionismos, de cientificismos, de fundamentalismos, de empreendedorismos, meritocracismos, de identitarismos, de conformismos, de psicologismos, de "pós-verdadismos" e outras ilusões que o leitor pode acrescentar à lista, aparentemente infinita.


"Ter juízo", ou seja, pensar e agir com sabedoria (conhecimento/razão combinado com sensibilidade/emoção), deve levar a que nos concentremos, enquanto Humanidade, a humanizar as nossas relações sociais, o que passa, necessariamente, do ponto de vista econômico, por: 1.acabar com a miséria (por meio de renda mínima universal ou de mecanismos de que asseguram condições elementares de sobrevivência - bolsas diversas, como vem sendo experimentado por alguns governos, sem abandonar iniciativas de ajuda e socorro levadas a efeito pela iniciativa privada, no âmbito da caridade, da filantropia e do terceiro setor/ongs?); 2.combater a pobreza e ampliar a classe média (fomentando a mobilidade social através de modelos de desenvolvimento inclusivos); 3.estabelecer e aplicar limites patrimoniais que evitem a excessiva/descomunal concentração de riqueza (emergência de super-ricos) a partir de práticas que resultam da proliferação de miseráveis. Tudo isso sem perder de vista que a atividade econômica, em cada lugar e no planeta como um todo, não pode continuar destruindo as condições ambientais necessárias à continuidade da vida na Terra. “Ter juízo” requer cidades visivelmente inteligentes (smart cities), no sentido de que nelas a vida respeita e preserva o ambiente natural do qual depende, nelas ninguém morre de fome ou de doenças evitáveis ou é vitimado pela violência, nelas a desigualdade extrema é, pelo menos, combatida, por ser considerada, além de injusta, disfuncional.


Do ponto de vista político, “ter juízo” exige que sejam encontrados e colocados a funcionar, em cada lugar, arranjos institucionais democráticos nos quais as exigências de liberdade e segurança sejam bem dosadas, permitindo, assim, a expansão das potencialidades individuais sem, todavia, romper as condições coletivas necessárias à coesão social. Este intento requer a organização dos cidadãos em partidos políticos e organizações da sociedade civil ao amparo da exacerbação ideológica estupidificante atualmente em voga, potencializada pelos novos meios de “militância” propiciados pela internet (conexão total entre indivíduos/organizações e localidades, em tempo integral; disseminação de fake news etc.). “Ter juízo” requer cidades em que os habitantes convivem visivelmente bem na divergência, respeitando diferenças e evitando preconceitos, maiorias não sufocando e muito menos procurando eliminar minorias, o bem comum sendo o verdadeiro foco-alvo da atuação dos que tomam decisões de impacto coletivo – cidades verdadeiramente democráticas.


Geopoliticamente falando, um esforço descomunal terá que ser feito para que não se perca o que de positivo trouxe a globalização das últimas décadas, mantendo vivos os alicerces do multipolarismo que vinha se desenhando até há pouco. O papel, nesse processo, das instituições multilaterais (como, por exemplo, a Organização das Nações Unidas, a Organização Mundial do Comércio, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional) é crucial, motivo pelo qual devem ser preservadas dos ataques que ora sofrem/sofrerão e, adicionalmente, fortalecidas sob novos desafios. Não se descarte, além disso, que novas e inovadoras instituições globais sejam criadas, enquanto blocos regionais vão sendo fortalecidos e urdidos.  “Ter juízo” requer, pois, que as cidades, como frações concretas dos países, e os países, como frações concretas do mundo, se relacionem entre si como partes de um imaginado e amplamente acalentado cosmopolitismo, no qual o fracionamento geográfico, as fronteiras e limites, espaciais que são, não se tornem divisores de almas em guerra total e permanente – como tão claramente se observa em Gaza, experiência paradigmática de um mundo em que a intolerância descamba em ódio incontrolável.


Não escapa nem mesmo à mais superficial observação que estas recomendações são elementares, óbvias, e que, por outro lado, são de dificílima implementação. Elas não são, todavia, superficiais: repousam na profundidade do desafio que está posto à Humanidade; elas estão dizendo: "Decifra-me ou devoro-te!". Ou encontramos rumos para o desenvolvimento socioeconômico menos concentrador da riqueza, menos injusto e menos insensível aos sofrimentos da maioria dos seres humanos, e também formas de convivência verdadeiramente democráticas, ou caminharemos para o caos social (já às portas para quem tem olhos de ver) e para a crise ambiental irreversível (que não é outra coisa senão a natureza gritando por socorro diante da agressão que vem sofrendo pelo modo de produção até aqui adotado).


Por fim, é preciso chamar a atenção para o fato de que ampliar e fortalecer a classe média traz como efeito colateral, se nada for feito contra isso, mergulhar a sociedade em consumismo ainda maior que o atual e também dar mais potentes asas ao que Theodor W. Adorno (1903-1969) conceituou como indústria cultural, na qual se movem e se banqueteiam os que Vladimir Nabokov (1899-1977) chamava de filisteus, assim os definindo:


"Um filisteu [ou uma pessoa vulgar] é um adulto cujos interesses são de natureza material e corriqueira [ordinária, banal, convencional, trivial etc.] e cuja mentalidade é formada pelas ideias e pelos ideais convencionais de seu grupo e de seu tempo [frases feitas, clichês, pseudosabedoria, discurso ´elevado´ etc.]" (...) Em sua ânsia febril de se conformar, de pertencer, de se juntar, o filisteu fica dividido entre dois desejos: o de agir como todos agem, de admirar, de usar esta ou aquela coisa porque milhões de pessoas usam; ou então fazer parte de um círculo exclusivo, de uma organização, de um clube, da clientela de determinado hotel ou da lista de passageiros de um transatlântico (...) O filisteu é quase sempre um esnobe."


O que recomendar para evitar o comportamento filistino, "natural" da classe média (embora não exclusividade dela) quando se propõem ampliá-la e fortalecê-la? É fundamental pensar sobre isso e encontrar saídas, se o que se deseja, ideológica e politicamente, fica longe do atual populismo em voga em todas as democracias de massa – que são democracias dirigidas ao eleitor médio, à classe média e a todos que, estando abaixo dela, desejam ascender.

 

"O atlas do Grande Khan também contém os mapas de terras prometidas visitadas na imaginação mas ainda não descobertas ou fundadas: a Nova Atlântida, Utopia, a Cidade do Sol, Oceana, Tamoé, Harmonia, New-Lanark, Icária. [E contém também] (...) os mapas das ameaçadoras cidades que surgem nos pesadelos e nas maldições: Enoch, Babilônia, Yahoo, Butua, Brave New World."

 

Entre o visível e o invisível, a cidade, e as formas do desejo de ser, e o medo de não ser, e a sombra do nada, no limiar entre sonho e realidade.

 

" – A cidade? – você insiste em perguntar.

– Voltamos para cá todas as manhãs para trabalhar – respondem alguns, e os outros: Voltamos para cá para dormir.

– Mas a cidade onde você vive? – você pergunta.

– Deve ser – dizem – por ali – e alguns levantam o braço obliquamente em direção a uma concentração de poliedros opacos, no horizonte, enquanto outros, às suas costas, indicam o espectro de outras cúspides.

– Então passei por elas sem perceber?

– Não, é melhor tentar ir adiante."

 

É melhor ir adiante. Ir adiante – a isso se dá o nome de Esperança: uma cidade às vezes logo ali, outras vezes lá longe, geralmente misturando edifícios deslumbrantes das metrópoles globais com escombros de Saná, de Gaza ou de Kiev, áreas “descidadificadas” pela guerra. O diminutivo máximo de homem, até o primeiro quartel do século XXI é Gaza.

 

(Jamais haverá sequer uma smart city visível se os habitantes forem todos ou em sua maioria stupid men/women – pessoas “sem juízo”, pois cidade é o coletivo de homem. Enquanto “juízo” o que o estúpido não possui: inteligência aplicada ao mundo com sabedoria – sabor da vida, bom tempero e bom enfeite de modos e estilos de vida; e sustento de bons, belos e justos jeitos de viver.)


 

Posfácio


É melhor ir adiante.

 

Assim termina uma jornada por cidades visíveis, habitadas por cidadãos visíveis. Mas nesta chegada, cumpre retornar ao ponto de partida: o coletivo de homem é cidade. Nesta frase, Pires encapsula todo seu livro com a precisão de quem sabe que as palavras, quando bem escolhidas, não apenas descrevem o mundo – elas o revelam.


O humano só é humano na pólis, no político, na cidade. Os gregos filósofos já o vislumbraram: somos criaturas que existem entre, no espaço do encontro, na tensão fecunda entre o eu e o outro. O humano criou a cidade, que passa a criar o humano, num ciclo de mútua constituição que nos define e redefine incessantemente. Como a linguagem, que inventamos e que nos inventa. Como o amor, que construímos e que nos constrói.


As cidades são isso: uma linguagem viva, interpretada e reinterpretada por cada um que nelas habita. Uma síntese sempre diversa de um mesmo texto primordial – o encontro de multidões de estranhos em espaços coletivos, surgido quando as famílias ousaram transbordar, crescer demais, romper o círculo estreito do sangue. O trânsito, a convivência, o uso desse espaço que não era de ninguém e, portanto, era de todos, instituiu uma novidade radical na história humana: a pólis.


Não é por acaso que Platão, ao buscar responder sobre o sentido da Justiça, imaginou e descreveu uma pólis: a República. O título original, politeia – constituição, co-instituição –, deixa mais claro o que hoje esquecemos. A cidade é exatamente isso que Pires recupera de forma vibrante: um local onde pessoas co-instituíram uma cidade, um modo de viver junto, uma voz coletiva. A phronesis platônica – essa sabedoria prática que emerge do estar-juntos.


Pensadores como Montesquieu, Rousseau e Tocqueville destacaram esse elemento como espírito do povo. A Ciência Política viria a identificá-lo como essencial ao estabelecimento de qualquer comunidade perene e pacífica: um acordo sobre o básico, o mais importante e primordial, aquilo que aproxima. A co-instituição, a constituição.


Nos acostumamos às constituições escritas e, consequentemente, a entendê-las como textos visíveis. Mas Pires foi buscar aquele sentido original: em cada cidade, encontrou o invisível que dá a cada uma sua visibilidade, transformando-as em vitrines de modos de vida. Fazendo um jogo luminoso com Calvino – que a partir do que foi um dia visível teceu redes de cidades invisíveis –, Pires, a partir do invisível, nos apresenta suas cidades visíveis.

 

Em Doha, o humano respira, hesita, vive. Vence batalhas, perde outras. Resigna-se, às vezes satisfeito por ter criado um oásis artificial, um enclave civilizatório no deserto. Ali, agarra-se a uma fé militante para suportar o peso de uma vida difícil.


Em Saná, vê-se face a face com o desumano: a violência, a guerra. Aquilo que quer destruir a cidade, desinstituí-la. Onde não há cidadão, o humano é apenas isso – homem, mulher –, com pouco a separá-lo do bestial. Estado de guerra de todos contra todos. Lobos contra lobos.


Em Mascate, o registro histórico da arquitetura nos ensina: construímos os prédios, então os prédios passam a nos construir. Quer manter a tradição? Mantenha os prédios. A música. As brincadeiras. Um estilo de vida, aquilo que foi co-instituído. Platão compreendeu isso: após conceber sua cidade perfeita, assombrou-se com o que poderia desintegrá-la. Fez até alertas contra os poetas: a poesia é arriscada demais para as verdades eternas.


Manama faz as vezes de oásis no deserto da abstemia religiosa. Um enclave onde o álcool está a um balcão de distância, onde corpos femininos estarão descobertos, onde carros de Fórmula 1 deixam suas marcas no mar de areia apenas para serem apagadas no ano seguinte. Paraíso efêmero que termina quando se volta pela ponte, para o cotidiano, a rotina da pólis e a pólis da rotina.


Há cidades para registrar sonhos, como Kuwait. "Tudo o que é possível deve ser feito" – seguiram o mantra dos cientistas do século XX. Se é possível sonhar, é possível realizar. Ou Abu Dhabi: cidades de abundância, de recursos, de projetos. Do petróleo milenar surgem futurísticas construções. Do invisível subsolo aos visíveis arranha-céus.


Em Dubai, o humano insistiu em lendas antigas sobre unir a pólis dos humanos à pólis dos deuses. Encravaram o Burj Khalifa, o prédio mais alto do mundo. Não consta que tenha alcançado Olimpo, ou Asgard, mas fez de cada habitante um pequeno deus, coproprietário dessa ponte aos céus.


E Riad. A turnê pelas cidades árabes, com tudo aquilo que mostram, remete ao que não mostram. Visível e invisível em lógicas dialógicas, conversando sobre modos de vida, sobre phronesis, sobre o que está co-instituído: o belo visível, gigantesco, alcançando os céus. O feio nas ruas, nos becos, nas restrições, nos dogmas, nas correntes invisíveis que aprisionam sem consciência. Uma co-instituição de dois mundos: extrema riqueza e extrema escassez. Às vezes os paraísos têm dentes. Os oásis são para poucos.

 

Na China, outras tantas cidades. Outros visíveis. Outros invisíveis.


Zhuhai ostenta exuberância urbano-arquitetônica repleta do vigor da juventude.


Hong Kong e seu frenesi de metrópole financeira, Macau com seus cassinos – ambas cidades-espetáculo, abertas para serem observadas, admiradas.


Shenzhen é como semente de mostarda: de um pequeno grão, uma planta imensa, daquelas capazes de fazer homens e mulheres refletirem sobre o Reino dos Céus. De um nada a uma potência, um lembrete do que o humano alcança quando se mobiliza.


Chongqing, a maior do mundo, com todas as dores e todos os prazeres do mundo. Suas dezenas de milhões de vidas mostram que não há limites para a pólis. Ao mesmo tempo que mostram os limites da pólis.


Xangai é riqueza em movimento, com tudo o que ela traz de visível e de invisível.


Em Pequim, capital desse universo de multidões, a abertura para uma inspiração reveladora: a cidade não é feita de pessoas, é feita por pessoas – um construto resultante da interação entre elas. A phronesis. Aquele espírito daquela coletividade naquele lugar. Espírito que se manifesta com força na milenar Shenyang: imperial, antiga, elegante. Ponto de despedida e de novas partidas.

 

Despedida física, encontro espiritual. Não mais visíveis, foi o invisível daquelas cidades a permanecer inquietando o espírito de Pires, levando-o a refletir sobre essa realidade básica: o humano só é humano na cidade; o humano faz a cidade, a cidade faz o humano.

Verdade antiga, soprada pelos gregos, vivida pelo humano em todos os cantos da terra. As letras grandes (cidades) facilitando a leitura das letras pequenas (humanos). Ajudando a compreender justiça e injustiça. Como ajudou Platão.


E retornamos, então, ao ponto de chegada, no qual Pires nos deixa nada menos do que a esperança.


Se cidades nos fazem, que façamos cidades melhores.


Esta é a proposição final, simples e devastadora. Porque reconhece que não somos vítimas passivas de forças históricas incontroláveis. Somos co-instituidores. A cada dia, com cada escolha, com cada gesto, estamos escrevendo a constituição invisível da cidade que habitamos.


O livro que você acaba de ler não é apenas um relato de viagens. É um convite urgente para que você olhe para sua própria cidade – aquela que habita seu corpo, seus passos, seus dias – e pergunte: que cidade estou ajudando a criar? Que invisível estou tornando visível?


As cidades de Pires são esboços de futuros porque o futuro não está escrito nas pedras dos arranha-céus ou no brilho das luzes noturnas. Está sendo esboçado agora, na forma como escolhemos viver juntos, na forma como co-instituímos nossa pólis.


É melhor ir adiante, sim. Mas ir adiante conscientes de que cada passo é também uma escolha. Então.

 

Brasília DF, novembro de 2025



O viajante


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Valdemir Pires, economista e ex-professor universitário (UNESP e UNIMEP, 1989-2019), é autor de vários livros e artigos técnico-científicos de Economia e de Gestão Pública, tendo publicado Imagens do Tempo (2023), antecedido pela trilogia Tempo (2020-2022). Este As cidades visíveis – Esboços de futuros (2025) aborda um aspecto do espaço (o humano-geográfico) das metrópoles globais.



O viajar


Em texto futuro será oferecida uma explicação sobre como aconteceram as viagens que serviram de base a este livro.


4 comentários

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Charles Vinicius
Charles Vinicius
24 de nov.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Professor Pires,


Ao longo desses textos, uma inquietação pessoal sempre me atravessa. Eu, que saí de uma cidade muito pequena do interior para estudar, trabalhar e buscar novas possibilidades, me vejo constantemente confrontado com a pergunta que também permeia as análises do senhor: afinal, o que chamamos de “progresso” está realmente libertando as pessoas — ou apenas as submetendo a novas formas de pressão?


As estruturas que moldam as cidades contemporâneas — econômicas, tecnológicas, políticas, culturais — tornaram-se tão complexas e aceleradas que, muitas vezes, parecem operar contra a vida comum. Enquanto isso, a simplicidade da cidade de origem, com menos oportunidades materiais, mas com mais vínculos, mais tempo e menos ruído, volta à memória como uma espécie de medida…


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Valdemir Pires
Valdemir Pires
há 6 dias
Respondendo a

Caro Charles, este seu comentário/depoimento enriquece o conteúdo do livro, sendo assim de valia para os leitores. Agradecido!

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Fernando Ramalho Martins
Fernando Ramalho Martins
30 de set.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Conteúdo com pitadas de poesia. Amei o texto, leve e instrutivo! Parabéns!

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Valdemir Pires
Valdemir Pires
14 de out.
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