O futuro visível das cidades árabes
- Valdemir Pires
- 26 de abr.
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Atualizado: 27 de abr.

Desde que se livraram do protetorado britânico e de outros esquemas de domínio estrangeiro diretos sobre elas e, em seguida, conseguiram se organizar na Opep – Organização dos Países Exportadores de Petróleo, para fazerem valer seus interesses a partir do controle de suas reservas de óleo e gás, que sustentam o padrão energético mundial, os países da Península Arábica transformaram profundamente suas capitais (Riad, Kuwait, Manama, Doha, Abu Dabi e Mascate, Saná sendo exceção), que de cidades invisíveis passaram a cidades visíveis ou, até melhor dizendo, cidades notáveis, globalmente conhecidas, tornando-se, no conjunto, um paradigma de urbanismo e de acolhimento turístico bastante admirado.
Para a configuração da realidade socioeconômica que se verifica nessas cidades-modelo que apontam para o futuro, concorreram dois movimentos: um resultante de agentes ativos, que competem entre si pela máxima riqueza e pelo poder (os donos do petróleo e seus associados); e outro, representado pela passividade das massas (os trabalhadores nas atividades comuns que parecem longe de se configurar como uma classe trabalhadora como preconizada por Karl Marx) que, na luta quotidiana pela sobrevivência, se adequam àquilo que decidem e implementam os agentes ativos.
A Península Arábica tem sido, desde as décadas finais do século XXI, um palco privilegiado para se acompanhar a manifestação desses dois movimentos. O lado ativo é, concretamente, o das famílias e dinastias que são praticamente proprietárias dos países que governam, altamente endinheiradas pelos negócios com o petróleo, sentadas nos tronos e alojadas em palácios, protegidas por regimes autoritários. O lado passivo é o dos milhões de trabalhadores explorados para produzir, em tempo recorde, tudo aquilo que as respectivas economias nacionais produzem para consumo interno e para exportação; esse imenso contingente possui uma característica singular: é constituído de imigrantes de países como China, Índia, Bangladesh, Paquistão, Indonésia, Filipinas, Malásia etc., chegando a representar um percentual significativo das populações locais, às vezes até a maioria nas áreas de maior densidade populacional; em sua quase totalidade são pessoas que fugiram da miséria em seus países de origem para se tornarem os pobres da população ativa nas cidades árabes, ali atuando nos setores industrial, da construção civil e de serviços, não pagando impostos mas também não tendo acesso a direitos básicos, como educação e saúde públicas.
Em todos os países da Península Arábica, exceto no Iêmen (destruído materialmente e desestabilizado politicamente por uma guerra civil de longa duração) há uma deliberada mudança no sentido de engendrar um novo padrão de desenvolvimento, não mais dependente do petróleo e do gás (que se esgotarão), recaindo as opções, em geral, nos setores imobiliário, da construção civil (infraestrutura, urbanismo e edifícios residenciais e comerciais), serviços (especialmente transportes e logística), do turismo/entretenimento (principalmente o de luxo) e financeiro (sob impulso de imensos fundos soberanos acumulados a partir das rendas petrolíferas).
O novo padrão de desenvolvimento decidido pelos governantes da região petrolífera árabe vem se mostrando, até agora, um sucesso. Mas parece depender de uma contrapartida pouco aceitável face a valores ocidentais: não há democracia nem mecanismos (como sindicatos e negociações coletivas) de defesa dos trabalhadores contra a superexploração e as condições tantas vezes inadequadas de trabalho. Até porque, o modelo de sociedade que ali vigora, e aparentemente se pretende aprofundar na medida em que se avance para o futuro, é um modelo explicitamente centrado no atendimento das necessidades e desejos dos extremamente ricos, permitindo que os apenas ricos se nutram nas bordas do bolo, mas não levando em conta que existem milhões e milhões de excluídos do acesso a um mínimo de qualidade de vida como paga pelas suas contribuições ao funcionamento da economia do luxo e da ostentação. Embora isso seja às vezes questionado por países ocidentais que mantém relações diplomáticas e comerciais com as nações árabes, à frente os Estados Unidos, seu principal aliado estratégico-militar, pouco ou quase nada tem sido feito para alterar o estado de coisas reinante. E há que se perguntar se há algo que possa ser feito, no caso, com eficácia, pois a noção de direitos humanos, por exemplo, por cujo respeito podem os Estados ser cobrados pelos organismos internacionais competentes, não se coadunam facilmente com certos dogmas do Islamismo, que na região arábica funcionam como leis, em Estados que não pretendem ser laicos.
O padrão de desenvolvimento escolhido na Península Arábica possui um intrínseco germe de desestruturação, que é a mencionada superexploração que nele se pratica, possibilitada pela apatia dos explorados e pelo medo que sentem das represálias do regime de força a eventuais rebeliões – mais cedo ou mais tarde, porém, a mesa pode vir a ser posta de pernas para o ar. E existem outros perigos que rondam a região, como por exemplo, a possibilidade não longínqua de acirramento das divergências entre as correntes do Islã, a exemplo do acontecido no Irã (com a deposição do Xá Reza Pahlavi em 1979) e dos fatos em curso no Iêmen (uma guerra civil sem perspectivas de vitória de um ou de outro dos lados, catalisada por interesses externos ao país); e o risco de o petróleo acabar antes de o novo modelo de desenvolvimento ser plenamente implementado, ou mesmo o risco de, uma vez implementado, perecer, por não mais poder contar com o amparo proporcionado pelo petróleo – será que há no mundo, ou haverá, tantos ricos e super-ricos para demandar todos os luxos e comodidades que os países árabes estão construindo/ofertando para atender este segmento específico?
Não se pode, além de tudo, desconsiderar uma questão cultural de fundo que ronda permanentemente o atual modo de vida em ascensão nos países islâmicos, que diz respeito à tentativa de combinar quotidianamente alguns ditames limitantes à liberdade, presentes no Islã (cultura local), com a lógica totalmente liberalizante do mercado (cultura global). Enquanto a última força numa direção, como nas vitrines das onipresentes lojas de grife internacionais (Ferrari, Chanel, Tiffany, Cartier, entre tantas outras) e de franquias ocidentais (McDonald´s e Starbucks, por exemplo), a primeira impõe às mulheres um vestuário incompatível com a moda e com a plena manifestação da identidade da mulher (impedida até mesmo de dirigir e praticar esportes). Vencerá a lógica mercantil, com em tantos outros lugares do mundo? Se ela não vencer, até quando será possível congelar a feroz contradição entre o que exige Maomé (o Profeta de Alá), no Alcorão, e o que preconiza o Profeta do Mercado) Adam Smith, n´A riqueza das nações?
Andanças no terreno entre o Mar Vermelho e os Golfos Pérsico e de Omã concluídas, é hora de mudar de área, seguir para outras terras, a ver se existe alternativa melhor para o futuro do que a encontrada ao lado das bombas cavalo de pau do deserto impiedoso. Simbá, o marinheiro, d´As mil e uma noites, certa vez decidiu: “Em vez de tomar o caminho do Golfo Pérsico, tornei a passar por várias províncias da Pérsia e da Índia, e cheguei a um ponto onde embarquei num bom navio...”. Eu, que tomei o caminho do Golfo, agora saltarei a Pérsia e a Índia num bom avião, dirigindo-me à China, carregando esperança de novidades, feito Marco Polo. Já sei que na China muitas cidades têm feições futuristas, até mais do que pude ver até agora, mas será que nelas os movimentos dos de cima e dos debaixo produzem o mesmo efeito que nas capitais árabes-petrolíferas?
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