Cidades: vitrines de modos de vida
- Valdemir Pires
- 14 de mai.
- 3 min de leitura

Novos modos de vida foram se tornando viáveis na medida em que, ao longo da História, os grupos humanos modificaram sua relação com a natureza no esforço de obter e provisionar os bens materiais necessários à sobrevivência.
Eram limitados os modos de vida quando o homem era coletor de alimentos, pescador ou caçador, vagando de um lugar a outro. Quando um bando encontrava o outro, cada um via a si mesmo nos indivíduos com que se deparava, cada qual levando em frente sua existência sem diferença significativa entre si.
Com a criação de animais em cativeiro e com a agricultura, que possibilitaram os assentamentos rurais, a condição sedentária permitiu diversificar os modos de vida. Em seguida, o surgimento de um excedente produtivo levou à prática do comércio, levado a efeito em feiras, as quais permitiram que estranhos se encontrassem e, assim, um tomasse conhecimento do modo de vida do outro, imitando-o quando conveniente ou desejável.
Os modos de vidas sofreram enorme diversificação quando foram adotadas as práticas de construir prédios para diversas serventias e de ligar lugares por meio de vias regulares (ruas e estradas), engendrando as cidades. Desde então estas têm sido verdadeiras vitrines de modos de vida, muito diversificados e crescentemente sofisticados. O que quer dizer que o fenômeno urbano, mormente depois de ter se tornado urbano-industrial, é a causa fundamental da possibilidade humana de viver conforme modos antes inimagináveis.
A cidade veio a ser o que hoje é: o locus da vida individual modelada pela vida coletiva baseada nas trocas mercantis. Envolvidos nesse tipo de trocas, todos se tornaram agentes econômicos que, necessariamente, compram e vendem; é nesse relacionamento mercantil compulsório que a mercadoria deixa de ser um mero bem de consumo material (que satisfaz necessidades de sobrevivência e de confortos mínimos), carregando, adicionalmente, o potencial de ser um bem de consumo voltado à autoafirmação, ao luxo, à ostentação, não mais exclusivos de uma reduzida elite palaciana ou encastelada – eis o porquê de a cidade ser, claramente, desde os seus primórdios, uma vitrine de modos de vida. Modos de vida vendáveis e compráveis. Portanto, modos de vida baratos, acessíveis a todos (populares, de massa); e modos de vida caros, acessíveis a poucos (sofisticados, de elite). E isso vale para todos os aspectos do modo de vida, desde comer/beber, a morar, passando por locomover, vestir e tudo o mais. De forma que, em busca de modos desejáveis de vida (entre os colocados nas vitrines), os indivíduos correm desenfreadamente atrás de rendas superiores, envolvendo-se nisso tanto os capitalistas quanto aqueles que eles exploram – eis o ímpeto para o desenvolvimento econômico acelerado, diversificado e que se pretende sem limites (embora eles claramente existam, como atestam os esgotamentos ambientais).
Os modos de vida que as vitrines atuais (cidades) enfaticamente mostram (vibrantes e ostentatórios) e que elas escondem (indo de humilhantes a desumanos), hoje sob impulso de um nível tecnológico nada menos do que fabuloso, deveriam ser objeto de reflexão para iluminar e orientar a trilha coletiva para o futuro, sob pena de este vir a ser um tempo de retrocesso civilizatório, no qual as relações sociais e as instituições perdem a funcionalidade que hoje têm para agregar os homens e colocá-los uns colaborando com os outros, na busca de vidas minimamente significativas para todos e para cada um.
De que maneira entender e avaliar o impacto, nas condições de vida futuras, dessas novas cidades visíveis, por exemplo, na Península Arábica, na China, no Sudeste Asiático? Cidades essas, muito diferentes das antes tidas como pontos de chegada/estado da arte (europeias e norte-americanas) que, pode-se dizer, hoje inauguram uma nova fase da urbanização, na qual o espaço urbano (crescentemente sobre solo criado, inclusive avançando sobre as águas marítimas) deixa de ser apenas a condição geográfica para a existência das comunidades sedentárias que se revelaram superiores às nômades do passado, para tornar-se a alavanca da ação global (portanto nômade, em nível planetário) de indivíduos, grupos, organizações, entidades para os quais o que conta não é a geografia/lugar para ficar/estabelecer, mas a geopolítica que sustenta as possibilidades de negócios que, se puderem, manterão a movimentação incessante até colonizar outros planetas, em geral em benefício de poucos.
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