Cidades visíveis - Doha
- Valdemir Pires
- 16 de abr.
- 4 min de leitura
Atualizado: 18 de abr.

O homem vence o espaço. À terra pouca da península que o confina, engenharia, máquinas e braços estrangeiros acrescentam uma ilha: Pérola. Sobre a terra nova conquistada ao mar, exuberância e luxo, extravagância regada a álcool, proibido na terra velha, regida pelo Alcorão. No deserto impiedoso que as águas do Golfo banham ao norte, ao leste e ao oeste, o homem já sobrevivera, heroico, no passado – ele e as cargas sobre os camelos, em terra; singrando as águas ao redor, em precários barcos: peixes e pérolas.

O homem vence o tempo. Na ampulheta, a areia (colhida no deserto?) desce, acelerada. Carrega para o fundo do bulbo inferior (passado), as pérolas e os pescados que o mundo ali buscava e mal pagava; no gargalo (presente), o líquido negro, jorrando para alimentar caldeiras e motores em todo o planeta, a preço de ouro; no bulbo superior (futuro), chegando rápido ao gargalo, um projeto novo de nação: finanças, logística, esportes, turismo – iscas para atrair endinheirados locais e globais, ávidos por mais.

O homem vence a escassez. À abundância de petróleo corresponde a falta de todo o mais, exceto as tâmaras, os minaretes, a fibra da alma beduína. Eis que, então, manda-se buscar, mundo afora e com absurda rapidez de entrega, o que necessário se faz: água, frutas, verduras, alimentos em geral – o que a terra nega; o aço, as máquinas, os computadores, os talentos especiais – o que os locais ainda não obtêm por si, por enquanto.

O homem vence o céu, e o enfeita com um skyline que se insere entre os outros, em todos os continentes, que a humanidade vai se habituando a admirar. De cima de edifícios tão altos quanto a engenharia pode construir, observa-se a cidade que brotou em tempo recorde sobre as areias, arquitetura futurista mesclada à árabe tradicional, do mesmo modo que, nas ruas, misturam-se vestimentas ocidentais a orientais, ternos e gravatas e dishdashas e turbantes.

O homem vence a escuridão. E então pode a multidão caminhar nas ruas à noite (quando as temperaturas amenizam), como se fosse dia. Os edifícios e avenidas vestem-se de colorido luminoso e o cenário, de longe, é cinematográfico e futurista; de perto, é uma imensidão de prédios novos, de arquitetura ousada, em ruas absurdamente limpas (em cada esquina seguranças desarmados, de jaquetas em neon), nas quais caminham predominantemente homens (entre eles, jovens árabes às duplas e trios, às vezes de braços dados) – parecem passear a esmo, numa busca que não creem venha a ser frutífera.

O homem vence o isolamento. Primeiro, estendendo as mãos para o mundo, oferecendo, a bom preço, os petrodólares que turbinaram a finança planetária: homens de turbante acolhidos nos salões restritos ao poder. Depois, abrindo as portas da própria casa (não mais tão árida), acolhedores, prontos a, galhardamente, fazer parte dos universos do esporte, da gastronomia, da moda, da alta cultura, da comunicação (Al Jazeera), da aviação (Qatar Airwais), da ciência e tecnologia. Logo ali, duas esquinas depois do souk, imensos e sofisticados (exageradamente sofisticados) shopping centers, com todas as grandes lojas de grife do Ocidente, de perfumes a roupas, de relógios a joias.

O homem não vence a desigualdade. Quase três milhões de habitantes, pouco mais de dez por cento de origem local; o restante, gente atraída por empregos, vinda de países onde não tiveram oportunidades: indianos, nepaleses, filipinos, bengalis, paquistaneses e outros. Os não locais não podem adquirir imóveis, exceto em áreas nobres internacionalizadas, como a Pearl. Entre os mais ricos e os mais pobres, um fosso de dimensões e profundidade das maiores do planeta: a família real, os donos do petróleo num extremo (como se lá no ponto mais elevado do mais alto edifício), de um lado; de outro, os imigrantes, isolados em áreas escondidas, ricos em relação ao que foram na sua origem, mas miseráveis superexplorados onde agora estão (como se na região mais funda das águas do Golfo Pérsico).

O homem não vence a arbitrariedade. O regime é fechado, controlado por uma família (Al Thani). É crime criticar o governante que, por outro lado, por não precisar, não cobra impostos. A mulher é submetida, diminuída, escondida. Ao homem é permitida a poligamia. Fazendo as contas, os machos sobram, frustrados, principalmente os imigrantes. Isso nota-se nas ruas, nos dias e horários de passeio, observando-se os números e os sentimentos de que dão indícios os semblantes.

O homem não vence a subordinação. Depois de permanecer sob domínio otomano (1871-1915) e de ser tornar um protetorado britânico (1916-1971), o Qatar conquistou a independência para se tornar uma monarquia absoluta, absolutamente sob influência americana...

Alguns homens (a maioria ingênua) não vencem a necessidade de uma fé, para suportar o peso de uma vida difícil, enquanto outros (uma minoria astuta) não resistem à tentação de fazer uso da fé para controlar e explorar os demais; fé esta em cujo âmbito radicais e moderados se digladiam, em toda a região entre o Mar Vermelho e o Golfo Pérsico, na busca por predominância dos dogmas deste ou daquele ramo da família do Profeta.

Doha: entre uma pérola branca do passado (beleza) e uma gota negra de petróleo (força) do presente, um mundo que se ergue na areia, rumo às nuvens (skyline), desenhando um futuro de opulência/ostentação e miséria/resignação, de liberdade e opressão, de sonhos e pesadelos; entre Ocidente e Oriente, um diálogo um tanto truncado entre civilizações incapazes de colocar ideias, riqueza e poder a serviço de um mundo em que todos tenham acesso a um mínimo de dignidade com base nos recursos e habilidades disponíveis.

Sensacional! a leitura nos remete para "dentro" da cidade, da sua arquitetura. Uma leitura sociológica daquela realidade! apesar de contagiante, não me provocou o desejo de conhecê-la! Quantas barreiras foram vencidas, mas a principal ainda fica mais acentuada, as das desigualdades!
Roberto Carlos Miguel