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Cidades visíveis - Riad

  • Foto do escritor: Valdemir Pires
    Valdemir Pires
  • 25 de abr.
  • 6 min de leitura

Atualizado: 25 de abr.




Planejei deixar Riad por último na minha peregrinação pela Península Arábica, lendo nos finais de noite, antes de dormir, Lawrence da Arábia, e dele retendo, por valiosa para as circunstâncias, a afirmação de que “Todos os homens sonham, mas não da mesma forma.” Também decidi que Dubai seria o penúltimo ponto da rota. O motivo: uma hipótese acerca das transformações por que passam os Emirados Árabes e a Arábia Saudita nas últimas cinco décadas, encaminhando-as a uma competição, entre si (mesmo que não declarada ou talvez nem consciente), que contém elementos definidores do futuro.

 


Dubai, nos Emirados Árabes, é o lugar onde mais claramente se pode observar (talvez por ter atingido o “estado da arte” da coisa) a manifestação socioeconômica, política e cultural concreta daquilo que poderá vir a ser o modo de vida típico das décadas futuras ao longo do século XXI: um modo de vida alicerçado não no modelo acalentado (e parcialmente colocado em funcionamento) no Ocidente – que combina, economicamente, mercado (movimentado por uma classe média local numerosa) e, politicamente, democracia representativa, sob influência de uma filosofia humanista e laica –, mas um modo de vida baseado num padrão de acumulação de riquezas que maximiza a diferença entre ricos e pobres, assim como inibe, quando não impede à força, qualquer tipo de oposição aos governos, avessos ao republicanismo, baseados numa combinação de ascendência dinástica com fundamentalismo religioso. O fracasso da equivocadamente denominada “Primavera Árabe” (fortes protestos, revoltas e rebeliões contra os governos nos países árabes nos anos 2010) dá indícios de que este modo de vida, apesar de suas profundas injustiças e contradições, possui grande resistência à mudança e aos questionamentos político-ideológicos.

 


Homens de negócios e turistas de todo o mundo usufruem de Dubai sentindo-se já no futuro e, mais do que isso, deliciando-se da condição de beneficiários inequívocos das benesses desse futuro, aparentemente brilhante como a própria Dubai à noite. O que sentem em Riad, capital da Arábia Saudita é parecido, porém em magnitude e intensidade inferiores. Equivoca-se quem diga que Riad deseja ser como Dubai, quando crescer: a capital saudita quer muito mais, pretendendo superar qualquer concorrente no tocante ao modo de vida de que é um lídimo exemplo. E está crescendo, cheia de projetos.

 


Dubai conta com o edifício mais alto do mundo, o Burj Khalifa (828 m, contra 385 m do PIF Tower no King Abdullah Financial District da capital saudita). No início de 2025, circularam notícias de que os saudárabes estão articulando a construção de um prédio concorrente, com 2 km de altura, no distrito comercial Polo Norte, ao preço de 5 bilhões de dólares, provindos do Fundo de Investimento da Arábia Saudita. Mas em se tratando de futuro do futuro, ou de um futuro para além do atual futuro, a Arábia Saudita pedala muito mais do que para construir uma torre que supere a de Dubai: embora com tropeços, está em andamento o que se tornou conhecido como Saudi Vision 2030, iniciativa comandada por Mohammad bin Salman bin Abdulaziz Al Saud, príncipe herdeiro e vice-primeiro ministro da Arábia Saudita, que visa transformar seu país na principal liderança árabe-islâmica e numa potência global de investimentos e de logística intercontinental. A iniciativa contempla um conjunto de projetos reunidos sob o título de Neom (palavra formada pelo prefixo latino neo – novo – e pela primeira letra de mostaqbal, palavra árabe que significa futuro).

 

Para seu novo futuro (Neom), a Arábia Saudita prevê um conjunto de projetos, como: The Line – cidade inteligente, em formato de traço, cortando o deserto por 170 km, com edifícios futuristas dotados de alta tecnologia e formas inovadoras de provisão energética e hídrica, sem ruas e sem automóveis, para uma população futura de 9 milhões de habitantes, iniciada em 2022; Sindalah – ilha de luxo no Mar Vermelho; Trojena – hotéis temáticos de luxo (Adventure, Oasis e Welness) integrados às montanhas; Leyja – destino turístico de luxo; Epicon Hotel – torres futuristas que desfiam a gravidade; Epicon Resort – residências de luxo; Siranna – hotel de luxo e residências exclusivas; Utamos – local de cultura e espetáculos imersivos com características totalmente inovadoras; Norlana – cidade para 3.000 residentes privilegiados, com campo de golfe, clube equestre, estrutura para esportes náuticos etc.; Aquellum – arranha-céus “ao contrário”, no interior de uma montanha; Zardun – hotéis de luxo (Wedge, El Tower, El Nature) num santuário de vida selvagem; Xainor – clube de luxo com arquitetura inventiva. Esses projetos têm em comum duas características fundamentais: 1. ousadia arquitetônica e locacional, alta exigência de habilidades e talentos (geralmente contratados no exterior) e colossais mobilizações de recursos materiais e humanos; 2. finalidade de servir a proprietários e/ou usuários de alto/altíssimo poder aquisitivo, em busca de exclusividade e alto padrão.

 

O Neom, como visão prospectiva, concebe o futuro como um tempo de vivências privilegiadas que requerem infraestruturas e condições materiais claramente fora do alcance das posses da imensa maioria dos seres humanos atuais, de modo que sua viabilidade não é algo assegurado. Todavia, revela qual modo de vida se pretende viabilizar com a riqueza acumulada pelo petróleo, em associação com a de outros setores (já que os fundos árabes não serão suficientes para bancar as despesas do projeto). Trata-se de um modo de vida diante do qual cabe perguntar como dele participarão (ou, antes, se participarão) os milhões de seres humanos despossuídos e de baixa e média posses – tornar-se-ão todos serviçais em atividades que a tecnologia não desenvolverá, ainda mais explorados do que hoje, ou serão “descartados”, depois de terem sido úteis ao processo de construção das faraônicas obras do Neom?

 

Dubai, mais do que Riad, ensaia a resposta a esta pergunta, mas ambas, por estarem vivendo o intenso processo de transição para o futuro imaginado (e confessado no Neom), por ora sustentam os atuais explorados/futuros descartados com um pouco mais que migalhas, ao passo que proporciona aos ricaços, notáveis e poderosos a oportunidade de experiências exclusivas que antecipam o porvir;  e deslumbra os menos bem aquinhoados turistas da classe média de outros países com seu “ouro de tolo” arquitetônico e urbanístico (visto de fora, altamente iluminado), circense (mostras e espetáculos) e consumista ostentatório (gastronomia, moda, perfumaria, joalheria).

 

E Riad, seguindo os passos de Dubai, mas mirando ultrapassá-la e adquirir maior velocidade que ela, “veste-se” de futuro, enquanto este vai sendo semeado em outras áreas da Arábia Saudita, como preconiza seu Neom.

 

Encravada na área continental (a 400 km do Golfo Pérsico), diferentemente das outras capitais árabes, localizadas nas costas, voltadas para o Golfo Pérsico e de Omã (exceto Sanaa, próxima do Mar Vermelho), Riad cresceu vertiginosamente, saltando de pouco mais de 150 mil (em 1960) para os atuais mais de 7 milhões de habitantes. Sua feição viária-urbana-arquitetônica vem passando por revoluções desde as décadas finais do século XX, tornando-a, juntamente com as demais capitais da região e com Dubai, uma cidade globalmente conhecida e visitada pelos atrativos com que passou a contar com o surto de reurbanização. O fato que lhe trará a mais dramática modificação em breve será a conclusão do projeto, em andamento, do Mukaab, um arranha-céu em vidro dourado, em formato de cubo, com 400 m de altura, em cujo interior haverá projeções holográficas que provocarão nos espectadores a sensação de estar em diferentes lugares e haverá também uma torre rotativa para observação em 360 graus, além de restaurantes e outras conveniências e opções; será o maior prédio do mundo em área e volume; no seu entorno, uma profusão de outras obras modificará a paisagem em profundidade, com forte impacto sobre a imagem e o funcionamento da cidade em geral.

 

Enquanto o novo futuro (Neom) não lhe vem, Riad vive o seu velho futuro, que é um presente futurista que em muito se assemelha (exceto pelas aspirações megalomaníacas da monarquia Suad), ao presente vivido pelas demais grandes cidades da Península Arábica: um presente marcado pelo exagero urbanístico-arquitetônico e financeiro-consumista, cujas obras brotam e crescem regadas a dinheiro acumulado em poucas mãos pelos negócios do petróleo. A partir desta capital muçulmana governam homens que a muito custo começam a ceder, lentamente, sem perder as rédeas atadas ao Alcorão, aos sonhos de liberdade do povo, especialmente dos jovens (que, imagine-se, agora terão oportunidade de assistir filmes em cinemas!) e das mulheres (que enfim poderão dirigir automóveis e praticar alguns esportes). Estes homens poderosos têm também seus sonhos (diferentes daqueles populares, sonhos de desmesurada grandeza), que fazem evocar outra vez Lawrence da Arábia: “...os que sonham acordados, esses são homens perigosos, pois realizam os seus sonhos de olhos abertos, tornando-os possíveis.”, mas reescrevendo a citação retirada d´Os Sete Pilares da Sabedoria com acréscimos importantes: “...os que sonham acordados e muito endinheirados, esses são homens perigosos, pois realizam os seus sonhos de olhos abertos, tornando-os possíveis do dia para a noite, assassinando, se necessário para realizá-los, os sonhos alheios.”

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