As cidades visíveis: esboços do futuro
- Valdemir Pires
- 24 de jun.
- 23 min de leitura
Atualizado: há 6 dias

(Livro em construção. Texto não revisado. Comentários são bem-vindos: no final da página ou pelo e-mail pires.valdemir@gmail.com)
"E o meu coração
Embora finja fazer mil viagens
Fica batendo parado naquela estação" (Adriana Calcanhotto, Naquela estação)

"Estava a pensar que há viagens sem regresso. E que nunca mais vou voltar desta viagem. Nunca mais vou regressar ao deserto." (Miguel de Souza Tavares, No teu deserto)

Prefácio (Cristiano Bodart) [Em elaboração]
A paisagem e o olhar
O futuro está sendo delineado nas cidades globais em que a inovação tecnológica (aspecto econômico da realidade) e os novos arranjos de poder (aspecto político da realidade) se combinam e se apresentam, brilhantes e coloridamente iluminados (com evidente intenção de deslumbrar), aos olhos do viajante atento, incapaz, ainda, de identificar a cidade invisível única por trás da explosão de consumo e espetáculo a que é submetido em meio aos arranha-céus e às inovações arquitetônicas (entre outras) que competem entre si em vários pontos do planeta.
Este livro, em construção, é um esforço de decifração do enigma socioeconômico-político-cultural do futuro (que mistura utopia e distopia em doses variáveis), convidando à aventura de viver e de entender/explicar/discutir, sem desconsiderar perigos, sondáveis e insondáveis, e sem negar, portanto, um certo temor com cheiro de fim de mundo, talvez dissipável (pelo menos o odor, de imediato) se rumos coletivos forem redefinidos sem perder de vista que "As cidades, como os sonhos, são construídas por desejos e medos..." (CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. Trad. Diogo Mainardi. São Paulo: Folha de São Paulo, 2003 - doravante fonte de todas as citações, entre aspas, exceto quando outra for mencionada)
"O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos [em nossas cidades visíveis e invisíveis]. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço [e dar-lhe tempo]."
É por se encontrar entre os que escolheram a segunda das opções acima que o autor deste livro decidiu escrevê-lo, na esperança, talvez vã, mas ainda assim, esperança, de diálogo com outros que adotam a mesma postura e, quiçá, também com os alinhados à primeira opção, convidando-os à mudança, convidando-os a buscar a felicidade seguindo o caminho oposto ao que trilham, por ser este mais autêntico e emancipador.

A partida
O futuro não é o tempo que virá: ele é o tempo que está vindo. Sua semente, no solo do tempo eterno (e que o homem, que é finito/temporário, experimenta aos pedaços: passado-presente-futuro), está amalgamada no presente, assim como as folhas mortas do passado, espécie de adubo de que se beneficiou o momento em curso. O futuro, não se duvide, "tem o pé" no agora, e jamais pisou tão firme como nas primeiras décadas do século XXI.
No agora do século XXI, que caminha para o final de seu primeiro quartel, cidades árabes e cidades chinesas estão esboçando, já, no espaço geográfico que ocupam e transformam com uma radicalidade inusitada, um futuro que, por um lado, não é o mesmo engendrado pela Velha Europa nem pelo Novo Mundo (estadunidense), mercantil-capitalista, democrático de massas, judaico-cristão; e que, por outro lado, entretanto, parecem se afunilar para uma espécie de ocidentalização redesenhada, com traços de islamismo amainado (caso os xiitas saiam derrotados na Península Arábica) e de capitalismo amansado (se o modelo chinês não desmoronar e vier a ocupar o lugar da "utopia possível", hoje nas mãos dos gestores social-democratas/keynesianos do Estado do bem-estar social dos Países Nórdicos).
"De uma cidade, não aproveitamos as suas sete ou setenta e sete maravilhas, mas as respostas que dá às nossas perguntas." Assim, viajar pelas cidades visíveis da Península Arábica e da China, prestando atenção ao que nelas ocorre em termos de modos de vida, estilos de vida e jeitos de viver, permite vislumbrar o futuro que elas estão esboçando, e faculta, adicionalmente (objetivo deste livro), transformar a tríade modo de vida-estilo de vida-jeito de viver num construto mental (para não dizer teórico, que seria algo somente científico-razão, quando é também literário/arte-emoção) com poder explicativo complementar ao de modo de produção (Marx) - aceitando-o, mas considerando que a poderosa visão do materialismo histórico não chega ao ponto de captar a existência individual com todas as suas nuances mutáveis.
Viajemos! Adentremos as vias, as praças, as edificações das novas cidades visíveis e também os labirintos escorregadios da mente (parte do corpo humano misterioso) em busca das cidades ainda invisíveis (apenas esboçadas) que a semente do futuro, germinando no presente, está trazendo à luz na Ásia, neste lusco-fusco gramsciniano que o mundo ora atravessa.
Oxalá não se aplique ao nosso caso, na volta, a recriminação do Grande Khan ao viajante veneziano:
"Retornou de países (...) distantes e tudo que tem a dizer são os pensamentos que ocorrem a quem toma a brisa noturna na porta de casa. Para que serve , então, viajar tanto?"
"Não sei quando você encontrou tempo de visitar tosos os países que me descreve. A minha impressão é que você nunca saiu deste jardim." O Grande Khan terá, de mim, sobre as minhas viagens para escrever este livro, uma resposta a esta impressão que teve em relação às viagens de Marco Polo. Em outro momento. Antecipo que foram, as minhas, viagens impossíveis, e até inconcebíveis, para o veneziano e para o imperador tártaro.
"Parece que você conhece melhor as cidades por meio do atlas do que visitando-as pessoalmente."
"De agora em diante, vou descrever as cidades e você verificará se elas realmente existem e se são como eu as imaginei."
II - As cidades visíveis árabes
Na Península Arábica, a economia petrolífera propiciou, a partir dos anos 1960-70, o surgimento de sete cidades hoje mundialmente visíveis, seis delas capitais de seus países (Kuwait, Manama, Doha, Abu Dabi – no Golfo Pérsico, Mascate – no Golfo de Omã e Riad – única fora da costa litorânea) e uma não-capital, mas importante sítio portuário, comercial, financeiro e turístico dos Emirados Árabes Unidos (Dubai). Saná, capital do Iêmen, distante aproximadamente 130 km do Mar Vermelho, é uma cidade visível por motivo distinto do desenvolvimento acelerado e da decorrente sofisticação urbanística e arquitetônica das outras capitais e de Dubai. Sua proximidade do Estreito de Bab el Mandeb, porta de entrada do Mar Vermelho vindo do Mar da Arábia e do Golfo de Áden, para chegar ao Canal de Suez – rota de comércio vital para o Ocidente – dá a ela uma posição estratégica, da qual, porém, não tem conseguido se aproveitar, por estar o Iêmen mergulhado numa guerra civil com ingredientes de confronto velado (não tanto) entre potências locais e globais, que descambou numa tragédia humanitária de difícil solução.
A visibilidade das cidades árabes-petrolíferas permite espreitar, dado o modo de vida que seu padrão de desenvolvimento engendra, um futuro socioeconômico específico, que é objeto de especulação na conclusão no diário de viagem por elas. Ao passo que a situação de conflito duradouro e insolúvel, com o decorrente mergulho da população na extrema miséria, no Iêmen, obriga a uma reflexão acerca das trágicas consequências da desagregação social e da perda de governabilidade/governança onde o Estado e as instituições da sociedade civil desaparecem ou perdem funcionalidade, abrindo espaço para que os mais variados tipos de aventureiros e grupos de interesse, locais e estrangeiros, ocupem os espaços de poder para impor sua vontade, à revelia do interesse coletivo e do bem-estar geral. Nesse sentido, o que o caso iemenita oferece é a plena visibilidade de um risco de retrocesso civilizatório que o passado e o presente, com todos os seus feitos tecnológicos, socioeconômicos, políticos e culturais admiráveis, ainda não conseguiram banir do horizonte futuro.
"Eis o que se conta a respeito de sua fundação: homens de diferentes nações tiveram o mesmo sonho... (...) Após o sonho, partiram em busca daquela cidade; não a encontraram..."
"É o seu próprio peso que está esmagando o império..."
"(...) em certas horas, em certas ruas, surge a suspeita de que ali há algo de inconfundível, de raro, talvez até de magnífico..."
"A qualquer hora do dia, levantanto os olhos através dos encanamentos, não é raro entrever uma ou mais jovens mulheres, esbeltas, de estatura não elevada, estendidas ao sol dentro das banheiras, arqueadas debaixo dos chuveiros suspensos no vazio, fazendo abluções, ou que se enxugam, ou que se perfumam, ou que penteiam os longos cabelos diante do espelho."
"Convictos de que cada inovação na cidade influi no desenho do céu, antes de qualquer decisão calculam os riscos e as vantagens para eles e para o resto da cidade e dos mundos."
"Viajando percebe-se que as diferenças desaparecem: uma cidade vai se tornando parecida com todas as cidades."
"POLO: (...) os carregadores, os pedreiro, os lixeiros, as cozinheiras que limpam as entranhas dos frangos, as lavadeiras inclinadas sobre a pedra, as mães de família que mexem o arroz aleitando os recém-nascidos, só existem porque pensamos neles.
KUBLAI: Para falar a verdade, jamais penso neles.
POLO: Então não existem.
KUBLAI: Não me parece ser esta uma conjetura que nos convenha. Sem eles, jamais poderíamos continuar balançando encasulados em nossas redes."
"As cidades também acreditam ser obra da mente ou do acaso, mas nem um nem outro bastam para sustentar as suas muralhas."
O futuro esboçado pelas cidades árabes
"Kublai Khan percebeu que as cidades de Marco Polo eram todas parecidas, como se a passagem de uma para a outra não envolvesse uma viagem mas uma mera troca de elementos."
III - As cidades visíveis chinesas
A China é a potência global que, paulatina e consistentemente, desde o final do século XX, mudou o cenário econômico e geoestratégico antes inquestionavelmente dominado pelos Estados Unidos (principalmente) e pela União Europeia (desde o Tratado de Maastricht, de 1993). Sua plena ascensão praticamente coincide com o fim da Guerra Fria, com a derrocada da União Soviética no final de 1991 e o espocar da chamada globalização neoliberal, combinada com um mundo dito multipolar.
Desde as Quatro Modernizações (reformas nos âmbitos da agricultura, da indústria, da defesa nacional e da ciência e tecnologia) concebidas e iniciadas em 1978 pelo Partido Comunista Chinês (sob a liderança de Deng Xiaoping e na contramão da visão de Mao Tsé-Tung) que levaram a uma abertura política sem precedentes e a uma política econômica com ampla e rápida adesão da iniciativa privada e do capital estrangeiro, a China protagoniza o que vem sendo conhecido como socialismo de mercado (ou modelo chinês de socialismo), de que resultou um surto desenvolvimentista no qual imensas, modernas e vibrantes cidades são talvez a expressão mais impressionante, uma vez que parecem ter surgido repentinamente e com um vigor nunca antes visto, nem mesmo na experiência soviética de crescimento acelerado. de Norte a Sul e de Leste a Oeste do país, interligadas por vastas redes rodoviária e ferroviária (principalmente, e com sofisticados trens de alta velocidade).
A todo momento, viajando pela China, pensava/sentia: "(...) me encontro neste momento sem um aqui nem um lá e sou reconhecível como estrangeiro por não estrangeiros..." (CALVINO, Italo. Se um viajante numa noite de inverno. Trad. Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1999)
São muitas as cidades chinesas visíveis, e que dão visibilidade ao modelo chinês, entre elas as seguintes, escolhidas sem critérios específicos (a não ser a vontade do viajante de percorrer uma certa rota), mas entendidas como suficientemente representativas do que ocorre na China.
"Para distinguir as qualidades das outras cidades, devo partir de uma primeira que permanece implícita. No meu caso, trata-se de Veneza."
"A cidade aparece como um todo no qual nenhum desejo é desperdiçado e do qual você faz parte, e, uma vez que aqui se goza tudo o que não se goza em outros lugares, não resta nada além de residir nesse desejo e se satisfazer."
"O catálogo de formas é interminável: enquanto cada forma não encontra a sua cidade, novas cidades continuarão a surgir."
"(...) cidade enganosa, tem um poder, que às vezes se diz maligno e outras vezes benigno: se você trabalha oito horas por dia como minerador de águatas ônix crisoprasos, a fadiga que dá forma aos seus desejos toma dos desejos a sua forma, e você acha que está se divertindo..."
"Em toda a sua extensão, a cidade parece continuar a multiplicar o seu repertório de imagens..."
"Mas a cidade não conta o seu passado, ela o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos da rua, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas..."
"Eu deveria enumerar as mercadorias que aqui se compram a preços vantajosos: ágata ônix crisópraso e outras variedades de calcedônia..."
O futuro esboçado pelas cidades chinesas
"As ruas da cidade eram aquelas que os levavam para o trabalho todas as manhãs, sem qualquer relação com a perseguição do sonho. Que, por sua vez, tinha sido esquecido havia muito tempo."
IV - Modos e estilos de vida esboçados pelas cidades visíveis árabes e chinesas [Texto parcial e provisório]
De alguma forma, "Todas essas belezas o viajante já conhece por tê-las visto em outras cidades."
"Entretanto, construí na minha mente um modelo de cidade do qual extrair todas as cidades possíveis."
"Você, que explora em profundidade e é capaz de interpretar os símbolos, saberia me dizer em direção a qual desses futuros nos levam os ventos propícios?"
V - Modos de vida, estilos de vida e jeitos de viver: o indivíduo e a sociedade sob a lente do mesoscópio [Fragmentos de um texto em elaboração]
A cidade, desde que surgiu, é a face imediatamente visível daquilo em que resulta a interação humana no que constitui a sociedade, que é a expressão da vida coletiva organizada, administrada, legalmente parametrizada - civilizada. É nela, na cidade-sociedade (uma fração do mundo de cidades interligadas), nesse meio múltiplo e multifacetado, sempre marcado por contradições e conflitos, que o indivíduo encontra o seu jeito de viver, que nada mais é do que um arranjo entre o que lhe vai no íntimo (desejos e aspirações, medos e temores, tabus e preconceitos, limitações e patologias etc.) e o que permite e nega o meio (social, ambiental, cultural) em que está vivendo, o qual funciona como moldura (impondo limites, padrões, obrigações etc.) para o quadro (existência) que será o seu, nunca de sua exclusiva autoria, já que todo jeito de viver emula - quando não cria, o que raramente acontece - um estilo de vida, espécie de quadro inspirador dos jeitos de viver. Os estilos de vida são expostos em compartimentos separados, na galeria existencial, conforme pertençam a uma das categorias de modos de vida: super-rico, rico, médio, pobre, miserável; ninguém desejando os dois últimos, mas a imensa maioria não escapando a seus traços e cores. Os modos de vida derivam de um dado modo de produção, concreto/histórico, tal como concebido por Karl Marx (no que tange ao processo produtivo e, parcialmente, à distribuição da riqueza) e complementado por John Maynard Keynes quando este explica a função da moeda (função inclusive fortemente redistributiva e limitadora/potencializadora do crescimento econômico), resgatando-a do fundo do poço em que Marx a havia deixado (mero véu a disfarçar o que é a verdadeira riqueza: o trabalho) e de onde Hilferding não foi capaz de resgatá-la.
Na economia mercantil contemporânea, sob a lógica da acumulação de capital (mesmo de capital financeiro e ainda que ela receba outro nome, como, por exemplo, socialismo de mercado), cinco são os modos de vida, como já dito: super-rico, rico, classe média, pobre, miserável.
Cada um desses modos de vida se define quantitativamente, em função do patrimônio e da renda do indivíduo considerado. Há um nível absoluto e um nível relativo para cada um. O absoluto é o definido globalmente: neste nível, o super-rico é aquele que figura na lista de algumas dezenas de bilionários existentes no planeta. No nível relativo, os super-ricos são os detentores dos maiores patrimônios em cada país. Os demais modos de vida obedecem à escala decrescente, até chegar ao miserável, que não tem patrimônio significativo e sua renda é nula ou tão pequena que não lhe garante mais (ou sequer) o sustento diário.
Os extremos da escala de modos de vida são uma espécie de desvio (útil à exploração e à dominação pelos super-ricos) do objetivo do sistema de trocas, que é viabilizar a cooperação voluntária (no sentido de não obtida pela força, como no escravismo) entre os agentes econômicos para a produção e a distribuição da riqueza material. Se o sistema funcionasse perfeitamente ou com imperfeições não exageradas do ponto de vista da distribuição da produção obtida com a participação de todos, não haveriam super-ricos nem miseráveis. Mas não é isso que efetivamente acontece, como demonstram a História e os dados da economia atual, na qual, aliás, parece haver concomitância entre fortunas pessoais/familiares bilionárias e bilhões de famílias na pobreza absoluta.
Dentro da “normalidade” da economia de trocas impulsionada pelo “instinto” individual de acumulação – que Schumpeter justifica como zelo do acumulador com seus descendentes , Keynes aponta como precaução em relação ao futuro, e Marx denuncia como ganância de uma classe – movem-se os ricos, a classe média e os pobres. Estes, lutam pela sobrevivência e, garantida esta, por sonhos materiais que proporcionam confortos e prazeres por cuja busca onerosa sentem-se realizados.
Na conceituação marxista de modo de produção, os capitalistas (os ricos, proprietários dos meios de produção) e os operários (o pobres vendedores do pouco que têm: sua força de trabalho) são as classes fundamentais da economia e da sociedade mercantil sob a égide do capital; os miseráveis são o lumpen, resíduo desprovido de importância para a evolução histórica; a classe média é um amontoado de indivíduos nem para lá, nem para cá na contradição de classes fundamental que cabe à mobilização, organização e revolução dos trabalhadores (os pobres) superar, extinguindo a sociedade classista e chegando ao comunismo, com baldeação na estação do socialismo.
Com base no conceito de modo de vida, sem desconsiderar a existência de exploração e dominação, o capitalista não é, necessariamente, o detentor dos meios de produção (um fundo de pensão, por exemplo, pode sê-lo, reunindo aplicações financeiras de um condomínio de pessoas de classe média), assim como não há qualquer resquício do “capitão de indústria”, o sujeito que comanda diretamente a força de trabalho explorada – e não se trata apenas de colocá-lo no topo de da estrutura administrativa hierárquica que caracteriza a moderna corporação, pois simplesmente aquela função desapareceu tal como concebida até o século XIX. Da mesma forma, a expressão operário, atualmente, soa como caneta tinteiro, fogão a lenha, carruagem, camponês: figura no passado industrial, na era das tecnologias da informação.
A classe média atual, que em Marx é a classe sem feição, é, de fato, a que dá feição à economia e à sociedade contemporâneas, seja no capitalismo liberal americano, no capitalismo social-democrata sueco/norueguês/dinamarquês ou no socialismo de mercado chinês. Prensado entre o desejo de ser rico e o risco incessante de se tornar pobre, o indivíduo de classe média é o que se movimenta para se manter à tona no mar de mercadorias que lhe são oferecidas para a manutenção de um padrão de vida consumista, necessário à sustentação da indústria de bens de consumo de massa apresentados pela propaganda como necessários e/ou distintivos. Sua felicidade baseia-se no consumo (tanto ostensivo quanto seu patrimônio e sua renda podem alcançar, a fim de parecer ombrear o rico), no espetáculo (lazer e entretenimento, o turismo internacional no topo da lista mais “nobre”.) e nos esforços para “aparecer bem na foto” (moda, gastronomia, “cultura”).
Sem classe média, não há consumo de massa; sem consumo de massa, não há produção massiva e standardizada; sem produção massiva não há escala suficiente (compradores em grande número e empresas gigantescas que os abastecem) para que o capital produtivo acumule o suficiente para sustentar-se e deixar livre uma porção de riqueza a ser apropriada pelos intermediários, como os comerciantes e os especuladores financeiros, por exemplo. Não está claro que o desafio vencido pelos famosos “milagres econômicos” foi, sempre, a expansão das classes médias urbanas? Resta dúvida sobre isso observando o atual caso chinês?
A esta altura, convém esclarecer que a palavra classe, na expressão classe média, aqui não significa classe no sentido marxista, pois é apenas um vocábulo para se referir a pessoas que, no conceito de modo de vida (que implica mobilidade, para cima ou para baixo), encontram-se no meio: não são pobres, nem ricas; tendem ora para cima, ora para baixo, como estando em uma gangorra. Não se trata, pois, de classe, nem no sentido “em si” (condição), nem no sentido “para si” (consciência da condição) – trata-se, mais, isso sim, de um grupo de indivíduos enfrentando uma situação existencial face a uma realidade coletiva/social que os obriga a se autoafirmar com base em valores que assimilam olhando para cima (para o modo de vida dos ricos), enquanto transitam por uma ponte que ameaça cair e derrubá-los no meio de outros indivíduos, cujo modo de vida temem e, muitas vezes, abominam. O medo e o desejo batem no peito do sujeito de classe média como a espora no cavalo: obriga a seguir em frente.
O modo de vida rico pode ser considerado, portanto, o ponto de chegada do sonho acalentado pelo indivíduo de classe média. Nele vai se aninhar, evidentemente, uma parcela pequena dos que partiram da classe média (tendo nascido nela ou a ela ascendido, por esforço, sorte ou uma combinação desses fatores). O tamanho dessa parcela depende fortemente de como o modo de produção funcionou abrindo ou fechando a porta de acesso de um compartimento (classe média) a outro (rico). A chave para abrir essa porta depende de muitos elementos ou de combinações de elementos que se manifestam na história econômica mundial e de cada nação.
O modo de vida pobre é o enfrentado pela maior parcela da população mundial e, também, da maioria dos países, variando conforme seja impulsionada para cima (classe média) ou para baixo (miserável). Sendo que o avanço tecnológico recente tem produzido efeitos assustadores: ao eliminar empregos tradicionais e não colocar outros no seu lugar, em número suficiente, este fenômeno tem dificultado a ascensão social e produzido desalento nas novas gerações. A probabilidade de um geração alcançar melhor padrão de vida que a anterior (o filho tornar-se mais rico que o pai), antes um dado, nas economias mais desenvolvidas, há décadas deixou de se manifestar.
A cidade (urbano-industrial/de serviços) é, mais do que o lugar onde predominantemente se vive, o locus da produção-circulação e da distribuição da riqueza, que se movimenta sob o comando do sistema (supra-humano) que combina dinheiro (expressão da economia) e poder (expressão da política) para gerar as condições materiais objetivas no interior das quais as subjetividades são submetidas ao desempenho de papeis estereotipados, porque do contrário escapam às condições que as tornam funcionais à manutenção/perpetuação do próprio sistema.)
As cidades visíveis são as que atingiram a maturidade, chegaram à plenitude, no que tange ao cumprimento integral de seu papel num dado estágio histórico-evolutivo do modo de produção/regime político e das formas concretas de segmentação dos modos de vida, oferecendo, assim, um portfolio específico de estilos de vida que ensejarão os jeitos de nela viver.
A chegada e o horizonte
"Jamais se deve confundir uma cidade com o discurso que a descreve." (Marco Polo, dirigindo-se a Kublai Khan, em As cidades invisíveis)
A cidade, desde que surgiu, é a face imediatamente visível daquilo em que resulta a interação humana no que constitui a sociedade, que é a expressão da vida coletiva organizada, administrada, legalmente parametrizada - civilizada. É nela, na cidade-sociedade (uma fração do mundo de cidades interligadas), nesse meio múltiplo e multifacetado, sempre marcado por contradições e conflitos, que o indivíduo encontra o seu jeito de viver, que nada mais é do que um arranjo entre o que lhe vai no íntimo (desejos e aspirações, medos e temores, tabus e preconceitos, limitações e patologias etc.) e o que permite e nega o meio (social, ambiental, cultural) em que está vivendo, o qual funciona como moldura (impondo limites, padrões, obrigações etc.) para o quadro (existência) que será o seu, nunca de sua exclusiva autoria, já que todo jeito de viver emula - quando não cria, o que raramente acontece - um estilo de vida, espécie de quadro inspirador dos jeitos de viver. Os estilos de vida são expostos em compartimentos separados, na galeria existencial, conforme pertençam a uma das categorias de modos de vida: super-rico, rico, médio, pobre, miserável; ninguém desejando os dois últimos, mas a imensa maioria não escapando a seus traços e cores. Os modos de vida derivam de um dado modo de produção, concreto/histórico, tal como concebido por Karl Marx (no que tange ao processo produtivo e, parcialmente, à distribuição da riqueza) e complementado por John Maynard Keynes quando este explica a função da moeda (função inclusive fortemente redistributiva e limitadora/potencializadora do crescimento econômico), resgatando-a do fundo do poço em que Marx a havia deixado (mero véu a disfarçar o que é a verdadeira riqueza: o trabalho) e de onde Hilferding não foi capaz de resgatá-la.
A cidade (urbano-industrial/de serviços) é, mais do que o lugar onde predominantemente se vive, o locus da produção-circulação e da distribuição da riqueza, que se movimenta sob o comando do sistema (supra-humano) que combina dinheiro (expressão da economia) e poder (expressão da política) para gerar as condições materiais objetivas no interior das quais as subjetividades são submetidas ao desempenho de papeis estereotipados, porque do contrário escapam às condições que as tornam funcionais à manutenção/perpetuação do próprio sistema.)
As cidades visíveis são as que atingiram a maturidade, chegaram à plenitude, no que tange ao cumprimento integral de seu papel num dado estágio histórico-evolutivo do modo de produção/regime político e das formas concretas de segmentação dos modos de vida, oferecendo, assim, um portfolio específico de estilos de vida que ensejarão os jeitos de nela viver.
As cidades visíveis chinesas e árabes são paradigmas de um futuro que não é o mesmo que emergiu na Europa e transbordou para os Estados Unidos (em declínio, "Sim, o império está doente e, o que é pior, procura habituar-se à sua doença.") apontando em direções diferentes no que tange à economia (capitalismo), à política (democracia) e à combinação entre ambas para a configuração de uma sociedade (mercado livre ou fracamente regulado e republicanismo/representação/sistema eleitoral como processos decisórios coletivos). Não obstante, nessas cidades observa-se uma tendência ocidentalizante no que concerne à organização da produção e das finanças, quanto à apropriação das tecnologias e, mormente e quanto à aceitação/adoção do consumo de massas e da cultura do espetáculo/entretenimento para nutrir corpos e almas no seu dia a dia. Assim sendo, as subjetividades se movem, na China e na Arábia, mantendo desejos estereotipados massificantes, propícios à produção de massas standartizada que é o filhote mais vigoroso do capitalismo combinado com democracia representativa sob grandes números. Necessário o reparo de que nas cidades árabes religião e elitismo dotam as concepções e as práticas de especificidades que precisam ser consideradas, diferenciando-as das levadas a efeito na China, onde a especificidade fica por conta de um Estado sob o socialismo real ali existente.
A cidade invisível que cada cidade visível esconde é uma só; não é vista apesar de ser evidente, óbvia. O que acontece é que em qualquer área urbana do século XXI - sob sistema capitalista (liberal ou de economia mista) ou "socialismo de mercado" e sob regime democrático, semidemocrático ou ditatorial - convivem mais ou menos harmonicamente super-ricos, ricos, médios, pobres e miseráveis - todos arranjando seu jeito de viver. Os super-ricos transitam entre as cidades, sem considerar as distâncias: cada uma delas é um local de pouso e decolagem de suas aeronaves particulares. Os ricos usufruem a cidade, sem estar presos a uma. Os cidadãos de patrimônio e renda médios tentam seguir e imitar os ricos, o que muitas vezes leva a que se tornem pobres... Os pobres trabalham, produzem e agarram o que sobra na farra consumista que é a festa popular de qualquer lugar, acrescentada dos espetáculos e dos entretenimentos de uma "indústria cultural"que, esta, afeta também as camadas de maiores posses, mormente os esnobes filisteus. Os miseráveis sobrevivem sem lugar nem rumo, mendigando socorro que nem sempre vem. O que varia de uma cidade a outra é o peso relativo de cada um desses cinco modos de vida no conjunto populacional.
Nas cidades do século XXI não há classes tal como tradicionalmente entendidas, pois este conceito se tornou míope para explicar a realidade pós-industrial (e talvez também pós-urbana, como apontam os enclaves dos ricos na "cidade lá fora") - o que há são categorias sociais de acordo com os modos de vida, sem relação inequívoca com a propriedade dos meios de produção; também não há partidos no sentido convencional do conceito - o que há são aglomerados de interesses que reúnem sujeitos pertencentes a todo os modos de vida: verdadeiros "balaios de gato"eivados de arrivistas e alpinistas sociais; por isso esquerda, direita e centro, politicamente falando, são expressões que fogem ao que indica a bússola ideológica.
No mar de mercadorias que é a cidade, estas são "pescadas" de acordo com o volume da propriedade privada de cada um (abstraindo-se a existência de receita e despesa governamentais que transfira renda), podendo essas posses (na forma de bens físicos, de papeis do mercado financeiro ou mesmo dinheiro - mais o contábil que o físico) ser comparadas a barcos pesqueiros, a redes de pescar, ao arpão e ao anzol. Por mais hábil que seja um pescador que disponha apenas de um anzol, linha e vara ou mesmo um sofisticado molinete, ele jamais chegará a encher mais do que o seu modesto embornal.
Se as atuais cidades visíveis - em qualquer dos continentes - irão mudar esta realidade nada animadora, no futuro, é algo que não se pode prever. Mas fato é que a concentração de renda tem aumentado, em cada lugar do mundo e no mundo como conjunto, assim como as tensões, urbanas e geopolíticas. A pós-modernidade não só é "líquida", ela também liquida, no mesmo sentido em que o policial truculento liquida o indivíduo que aborda. E o faz sem que haja punição ou simples reprimenda: os gritos dos oprimidos e explorados não são mais ouvidos (quando são emitidos) e os protestos dos discordantes, além de minguar, não têm sido considerados de maneira politicamente eficaz e nem mesmo relevante. A pós-modernidade quase já liquidou a Utopia e está colocando no seu lugar a sensação, que tantas teorias e filosofias corroboram (vendendo exemplares de livros a rodo, na mesma estante em que são oferecidas obras de auto-ajuda), de fim de tudo, até mesmo da propensão humana a pensar e a sonhar.
Talvez o melhor, para concluir, seja dizer que se não voltarmos, coletiva e globalmente, a "ter juízo", o que o futuro nos reserva é um mundo à imagem e semelhança de Saná, a mais dramática das cidades visíveis aqui mencionadas. E para isso não concorrerá uma revolução repentina, mas uma involução paulatina. Mas, afinal, o que é "ter juízo"? Calvino já ofereceu um bom ponto de partida para a resposta, e foi aqui citado anteriormente, posicionando-se sobre como lidar com o inferno (não-metafísico nem religioso). Também ajuda saber que "ter juízo" fica longe de negacionismos, de cientificismos, de fundamentalismos, de empreendedorismos, meritocracismos, de identitarismos, de conformismos, de psicologismos, de "pós-verdadismos" e outras ilusões que o leitor pode acrescentar à lista, aparentemente infinita.
"Ter juízo", ou seja, pensar e agir com sabedoria (conhecimento/razão combinado com sensibilidade/emoção), deve levar a que nos concentremos, enquanto Humanidade, a humanizar as nossas relações sociais, o que passa, necessariamente, do ponto de vista econômico, por:
acabar com a miséria (por meio de renda mínima universal ou de mecanismos de que asseguram condições elementares de sobrevivência - bolsas diversas, como vem sendo experimentado por alguns governos, sem abandonar iniciativas de ajuda e socorro levadas a efeito pela iniciativa privada, no âmbito da caridade, da filantropia e do terceiro setor/ongs?);
combater a pobreza e ampliar a classe média (fomentando a mobilidade social através de modelos de desenvolvimento inclusivos);
estabelecer e aplicar limites patrimoniais que evitem a excessiva/descomunal concentração de riqueza (emergência de super-ricos) a partir de práticas que resultam da proliferação de miseráveis.
Não escapa nem mesmo à mais superficial observação que estas recomendações são elementares, óbvias, e que, por outro lado, são de dificílima implementação. Elas não são, todavia, superficiais: repousam na profundidade do desafio que está posto à Humanidade; elas estão dizendo: "Decifra-me ou devoro-te!". Ou encontramos rumos para o desenvolvimento socioeconômico menos concentradores da riqueza, menos injustos e menos insensíveis aos sofrimentos da mairia dos seres humanos, ou caminharemos para o caos social (já às portas para quem tem olhos de ver) e para o a crise ambiental irreversível (que não é outra coisa senão a natureza gritando por socorro diante da agressão que vem sofrendo pelo modo de produção até aqui adotado).
Por fim, é preciso chamar a atenção para o fato de que ampliar e fortalecer a classe média traz como efeito colateral, se nada for feito contra isso, mergulhar a sociedade em consumismo ainda maior que o atual, e também dar mais potentes asas à chamada indústria cultural, onde se movem e mandam os que Nabokov chamava de filisteus, assim os definindo:
"Um filisteu [ou uma pessoa vulgar] é um adulto cujos interesses são de natureza material e corriqueira [ordinária, banal, convencional, trivial etc.] e cuja mentalidade é formada pelas ideias e pelos ideais convencionais de seu grupo e de seu tempo [frases feitas, clichês, pseudosabedoria, discurso ´elevado´etc.]" (...) Em sua ânsia febril de se conformar, de pertencer, de se juntar, o filisteu fica dividido entre dois desejos: o de agir como todos agem, de admirar, de usar esta ou aquela coisa porque milhões de pessoas usam; ou então fazer parte de um círculo exclusivo, de uma organização, de um clube, da clientela de determinado hotel ou da lista de passageiros de um transatlântico (...) O filisteu é quase sempre um esnobe"
O que recomendar para evitar o comportamento filistino, "natural" da classe média (embora não exclusividade dela) quando se propõem ampliá-la e fortalecê-la? É fundamental pensar sobre isso e encontrar saídas, se o que se deseja, ideológica e politicamente, fica longe do atual populismo em voga em todas as democracias de massa - que são democracias dirigidas ao eleitor médio, à classe média e a todos que, estando abaixo dela, desejam ascender.
"O atlas do Grande Khan também contém os mapas de terras prometidas visitadas na imaginação mas ainda não descobertas ou fundadas: a Nova Atlântida, Utopia, a Cidade do Sol, Oceana, Tamoé, Harmonia, New-Lanark, Icária. [E contém também] (...) os mapas das ameaçadoras cidades que surgem nos pesadelos e nas maldições: Enoch, Babilônia, Yahoo, Butua, Brave New World."
Entre o visível e o invisível, a cidade, e as formas do desejo de ser, e o medo de não ser, e a sombra do nada, no limiar entre sonho e realidade.
" - A cidade? - você insiste em perguntar.
- Voltamos para cá todas as manhãs para trabalhar - respondem alguns, e os outros: Voltamos para cá para dormir.
- Mas a cidade onde você vive? - você pergunta.
- Dever ser - dizem - por ali - e alguns levantam o braço obliquamente em direção a uma concentração de poliedros opacos, no horizonte, enquanto outros, às suas costas, indicam o espectro de outras cúspides.
- Então passei por elas sem perceber?
- Não, é melhor tentar ir adiante."
É melhor ir adiante. Ir adiante - a isso se dá o nome de Esperança: uma cidade às vezes logo ali, outras vezes lá longe, mas geralmente misturada com os edifícios deslumbrantes das metrópoles globais e com os escombros de Gaza ou de Kiev.
O viajante
Valdemir Pires, economista e professor universitário (UNESP e UNIMEP, 1989-2019), é autor de vários livros e artigos técnico-científicos de Economia e de Gestão Pública, tendo publicado "Imagens do Tempo" (2023), antecedido pela trilogia "Tempo" (2020-2022). Seu "As cidades visíveis" (2025) aborda um aspecto do espaço (o humano-geográfico) das metrópoles globais.
Comments