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  • Foto do escritorValdemir Pires

Quando eu fui a Macau (5a. parte)

Star ferry pier - Cartão postal de Hong Kong, 1998


Em meados de 1998 havia entre Macau e Hong Kong uma diferença que se “sentia no ar”, e no mar. Hong Kong estava efervescente, vibrante; era toda ousadia e petulância. Macau não estava de joelhos, mas durante o baile se mantinha sentada na cadeira – não tinha sido convidada a dançar, apesar de estar na festa, e não tomava a iniciativa – preparava-se, enfeitava-se até, para a devolução à China no ano seguinte. Hong Kong dava sinais de confiante rebeldia, fortalecendo-se de olho no futuro, para onde apontavam sua arquitetura vertical e envidraçada, o surto imobiliário em curso (na ocasião um tanto travado pela crise recente), a inusitada ampliação da área de terra avançando sobre as águas para a construção de um novo aeroporto.


Para um passeio a pé de dia inteiro, tomei o jetfoil de volta de Macau para Hong Kong numa manhã em que não se podia saber como ficaria o clima, nuvens se acumulando em meio a uma temperatura opressiva. Era estranho passar pelos procedimentos migratórios indo de um ponto a outro separados por tão pequena distância; mais estranho ainda saber que estava indo de Portugal à Inglaterra, em ambas as partes o idioma sendo chinês. Nas placas é que se percebia a mudança: chinês em dupla com português, num lado; em dupla com inglês, no outro. Naquele tempo não havia a superponte sobre as águas ligando Macau/Zhai a Hong Kong, o trajeto sendo feito de barco.


Pequenos comércios e serviços convivendo com grandes lojas e shopping-centers, hotéis e prédios de grandes empresas e bancos, nas ruas movimentadas, repletas de automóveis de luxo, Hong Kong era então um filme em ritmo acelerado rumo à cidade do futuro, com sua infraestrutura grandiosa, eficiente e de uma beleza estranha, desconcertante. Havia um esforço notável em manter tudo limpo e funcional nos espaços públicos, além de atraente, como em diversas praças e locais de lazer. O metrô funcionava exemplarmente e ligava as áreas com uma racionalidade incrível, tudo extremamente bem sinalizado, garantindo que o imenso fluxo de pessoas não tornasse o transporte de passageiros excessivamente desconfortável, como então acontecia em São Paulo nos horários de rush. Chamou a atenção a existência de numerosas estruturas em concreto armado, ferro e vidro ligando aereamente as margens das avenidas, na forma de passarelas, às vezes ligando não as calçadas para pedestres, mas um edifício a outro. A fiação da energia elétrica não era suspensa, mas subterrânea em várias áreas. Aquilo que hoje se toma como cidade do futuro, ao estilo Dubai, Doha, Kuala Lumpur, por exemplo, ali se gestava: arranha-céus notados a grandes distâncias, com perfil artístico desafiador, puxando os olhares sobre si de modo a, juntamente com outros conjuntos arquitetônicos, definir uma skyline “instagramável”, que tem a função de identificador global da cidade, da mesma forma como acontece com o Cristo Redentor, a Torre Eiffel, o Big-Ben e a Estátua da Liberdade em relação ao Rio de Janeiro, a Paris, a Londres e a Nova York, respectivamente.



Foto avenida e edifícios de Hong Kong, 1998 (Valdemir Pires)


Engenharia, arquitetura e urbanismo, na Hong Kong do final do século XX estavam, então, dando início ao salto para o que eu hoje diria serem as cidades sem passado. Áreas urbanas que se transformam num ritmo acelerado (sob impulso da especulação imobiliária e da competição global entre áreas geográficas escolhidas, na disputa por investidores), modificando o modo típico das velhas cidades de trafegar, transportar, transacionar, comunicar, trabalhar, viver, enfim; e isso tão rapidamente a ponto de essas cidades não parecerem resultado de uma evolução histórica da vida urbana, em suas tramas sociais, econômicas, políticas, culturais, mas se assemelharem a uma implantação alienígena, ao toque de uma vara de condão ou de palavras mágicas.


Atualmente acontece em Hong Kong, diariamente, às vinte horas, a Symphony of Lights, que é um espetáculo em que luzes e sons podem ser apreciados no skyline da cidade, a partir da Tsim Sha Tsui, entre a Avenida das Estrelas e o Centro Cultural de Hong Kong, ou em embarcações ao longo da baía Victória. Neste evento, a cidade se exibe, orgulhosa de si, para multidões que se acumulam nos locais. Em 1998, Narciso ainda não tinha chegado a tanto, enfeitiçando não uma pessoa, mas uma metrópole. Entretanto, a partir da Tsim Sha Tsui já se desfrutava da vista encantadora de um formigueiro humano se reinventando e imprimindo sua imagem na lembrança de quem quer que o observasse, mesmo de passagem.



Foto panorâmica de Hong Kong a partir da margem oposta, 1998 (Valdemir Pires)


Isso de possibilitar que se olhe para uma cidade (e não para um determinado ponto turístico dela), a partir de um ponto deliberadamente propício para isso, especialmente à noite (proporciona os espetáculos de luz e cor, com ou sem sons e jorros de fontes de água), com o encantamento de quem assiste a uma performance circense (trapezistas, globo da morte etc.), deve ser algo de que Hong Kong foi precursora no final do século XX, exemplo seguido por outras áreas atuais de fama global por tais performances arquitetônico-urbanísticas narcísicas.


“Narciso acha feio o que não é espelho”. Pelo mesmo motivo, esconde do espelho o que não acha bonito. Nem tudo são flores na cidade do futuro que se exibe, nem tudo nela são agradáveis odores. O desenvolvimento urbano sob competição capitalista, principalmente quando muito acirrada e acelerada, como é o caso, fere em diversos pontos o tecido urbano, deixando marcas que ofendem a estética e também a ética. Com uma densidade populacional excessiva, Hong Kong tem que solucionar, para milhões e milhões de pessoas humildes, o problema de morar e acessar os meios comezinhos de vida. E aí a conversa é outra... Hoje se percebe que em cidades chinesas, de desenvolvimento sob elevado grau de controle estatal (ao contrário do que aconteceu e acontece em Hong Kong), as soluções parecem ser menos desfavoráveis aos cidadãos comuns, que não estão entre os artífices e principais beneficiários dos grandes empreendimentos. O nível de vida da população em geral, na megalópole de Chongqing (mais de 30 milhões de habitantes), por exemplo, parece não ser tão destoante entre indivíduos e famílias, a miséria sendo menos ameaçadora.


Uma vez em Hong Kong como turista, inevitável visitar (imperdoável não visitar) o Victoria Peek, que proporciona o ponto de vista panorâmico mais espetacular de Hong Kong. Ver a cidade e sua área circundante se tornou “uma experiência” apreciadíssima que, a partir de torres de alturas antes inimagináveis, hoje é anunciada com ênfase e vendida em larga escala pelas cidades vibrantes do futuro, no mundo todo. Em Hong Kong (como no Rio de Janeiro), a vantagem geográfica desde cedo foi aproveitada para isso. Há um equipamento ferroviário (um funicular) que leva até lá desde o final do século XIX. E a vista é, mesmo, de perder o fôlego. Em 1998 ainda se podia notar dali o canteiro de obras de uma parte da Hong Kong atual.



Foto de visão de Hong Kong desde o Victoria Peek, 1998 (Valdemir Pires)


A visita terminou numa loja da rede MacDonald. Tive que reajustar o paladar ao modo estupidamente ocidental para não ter problemas... Da mesma maneira, um ajuste cautelar terá que ocorrer, no século XXI, entre o modo chinês de lidar com economia e política e o modo como o ocidente o faz, para que o futuro de Hong Kong não se torne objeto de disputa conducente a confrontação bélica. Essa possibilidade existe muito mais por razões estratégicas e geopolíticas que econômicas, financeiras e comerciais, posto que no tocante a estas a China, para se contrapor a uma eventual Hong Kong avessa ao alinhamento que se prevê e preconiza, já conta com o modelo econômico implantado na província peninsular de Hainan, meca do livre comércio e hub de transportes (economicamente) e também um Havaí do oriente (turisticamente).


De fato, o novo e potencialmente conflitivo que se anunciava em Hong Kong no final do século XX, momento áureo da globalização contemporânea de que a região era então um símbolo, não era apenas o perfil das insinuantes cidades futuristas do século XXI, mas também, aparentemente, a derrocada de sistemas e regimes “puros” (capitalistas ou socialistas) como organizadores das relações econômicas e políticas, com a decorrente busca (melhor paulatina que brusca) de alternativas híbridas, a China despontando como modelo aparentemente bem sucedido. Sim, nessa direção o ponteiro do tempo histórico apontava e continua apontando.


6a. parte em redação

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