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  • Foto do escritorValdemir Pires

Quando eu fui a Macau (4a. parte)


A mudança do tempo histórico no Sudeste Asiático no fim do século XX (Valdemir Pires)


Depois do passeio vespertino, cheguei ao hotel cansado, satisfeito com o que pude explorar. E com fome. Enquanto me restaurava com facilidade, no conforto do quarto abastecido e dotado de condições para um banho agradável, decidi jantar no luxuoso restaurante do último andar. Tratava-se praticamente de um ponto turístico, pois é um amplo salão em formato circular, totalmente envidraçado, de onde se pode ter uma vista de 360 graus de Macau, de Hong Kong e das vizinhanças chinesas. E com um detalhe nada desprezível: gira. Sim: um prédio cujo último andar é giratório. Um espanto, para mim; uma respeitável inovação para a construção civil daquele tempo.


Hotel Metropark, antigo Grandeau (divulgação)


O ambiente era altamente sofisticado, incluindo música ao vivo, clássica ao piano. Os pratos e o serviço de alta categoria valeram o preço, enfrentado com a facilidade da vantagem cambial e dos descontos para os participantes do evento em que eu estava inscrito. Foi uma noite espetacular, uma experiência: música, vinho, boa comida, a visão de uma belíssima área do planeta – especialmente à noite – apreciada em seus sucessivos pontos de interesse, sentado numa confortável cadeira. A vontade era de que não terminasse nunca. Só faltou poder compartilhar com mulher e filho, que estavam muito longe. Pensei em contar-lhes tudo que estava vivenciando. Mas ainda não era o tempo das facilidades da rede mundial de computadores, celulares e whatsapp.


Rotunda do Hotel Metropark, antigo Grandeau (divulgação)


Os meios rápidos para fazer contatos internacionais eram o telefone (impagável para falar muito) e o telex (frio demais). O e-mail era ainda uma novidade. Para enviar um eu teria que fazer uso dos serviços do hotel ou de uma lan-house (coisa que estava se disseminando, então), mas seria só texto e havia filas para utilizar os computadores. Decidi enviar um cartão postal (ainda existiam). Teria que comprar um nas lojas de gifts e depois ir ao correio para enviar. Tomei essas providências na manhã seguinte e o resultado, guardado por décadas, é um registro material da transição de um mundo a outro (acontecendo ali, onde eu estava), no âmbito das comunicações, ou, pelo menos, da tecnologia das quais elas se servem:



Quando o e-mail era a agilidade por excelência, na internet, o envio de um prosaico cartão postal do Oriente para o Ocidente (1998)


Eu já era, naquele dia, alguém em defasagem tecnológica para me comunicar. Eu vira, nas ruas, locais de comércio e serviços e nos meios de transporte coletivo, uma numerosa quantidade de pessoas utilizando telefones móveis. Veria mais ainda, dias depois, caminhando em Hong Kong. Os celulares não eram tão disseminados no Brasil. Meu primeiro aparelho foi presente de um grande amigo, Alcebíades Godoy Espíndola, anos depois. Pior, nem mesmo os telefones fixos eram acessíveis aos brasileiros, pois começaram a ser somente depois da privatização do Sistema Telebrás, que ocorreu no dia 29 de julho de 1998, um mês após meu retorno da China ao Brasil. Basta este relato para ser ter ideia da defasagem de outras partes do mundo, em relação ao Sudeste Asiático, em termos dos avanços tecnológicos que marcariam as décadas e o início do século seguintes. Um sucateamento teria que ser superado por muitos países e, no esforço de fazê-lo, os Tigres Asiáticos teriam que ser procurados, daí tirando a imensa vantagem que estava começando a caracterizá-los.


No trajeto entre o hotel e o correio passei ao lado da construção de um novo edifício, que não me chamaria a atenção, não fosse o fato de que, já elevado (uns dez andares) estava cercado por andaimes totalmente de bambu. Onde se construíam edifícios como a notável torre envidraçada do Banco da China (cartão postal global de Hong Kong e ícone da engenharia moderna, naquele tempo), os trabalhadores utilizavam bambu! O formigueiro de gente se movendo naquelas hastes vegetais com habilidades típicas de macaco era um espetáculo sem igual. Mais um impressionante ponto de convergência entre o antigo e o contemporâneo, a pobreza e a riqueza, em Macau.


Pareceram-me superexplorados e submetidos a condições de trabalho muito arriscadas aqueles operários da construção civil. Assim como avaliei como injusta uma atividade de idosos ao longo de trechos com pontos de visitação e contemplação: o transporte de turistas, a passeio, nos riquexós, que são um assento confortável sobre duas altas rodas raiadas (com pneus de borracha, como numa, ou simplesmente de madeira ou metal), do qual saem, para a frente, duas hastes de madeira ou metal (uma pequena carroça, pois), no interior das quais o condutor (um velhinho) se coloca como um cavalo para transportar a carga humana. Em outra versão, tem o formato de um triciclo. Num guia turístico o riquexó (também chamado de riquixá) era assim apresentado: “é a maneira mais calma e romântica de passear por Macau. O preço do aluguer, incluindo ambos os passageiros [ambos os passageiros!], ronda as 80-100 patacas por hora.” Não tive coragem de alugar o equipamento, embora soubesse que com isso estar negando renda aos que proporcionavam aquela “brincadeira”. Depois eu não teria coragem de contar aos outros esta experiência. Como dizia Kant, o que não poderá contar aos outros, por vergonha, não faça.


O passeio de junco (simples e antigo) naquelas águas rodeadas por áreas urbanas admiráveis (pela sua sofisticação e modernidade), ah, não fiz... É esta uma coisa de que tenho arrependimento e vergonha de ter feito (fiz isso: deixei de fazer o passeio), mas que conto, aqui, contrariando Kant.


5a. parte em redação

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