O tempo cronológico avança à base de frações de segundo, horas e minutos sendo as unidades de medida passíveis de acompanhamento por meio dos relógios comuns; e dias, semanas e meses permitindo aferir o avançar dos anos que duram as vidas de todos e de cada um. O tempo histórico, por sua vez, não se pode medir com nenhum instrumento.
O tempo histórico não é o simples, incessante e unidirecional passar das horas, dias, meses, anos, décadas. Ele se refere às características que marcam as relações sociais, culturais, políticas, econômicas e interpessoais com as quais os indivíduos e sociedades “preenchem” as suas existências, sempre em transformação.
O modo como as pessoas e sociedades se relacionam ao longo de seus dias de existência se modifica ao sabor das circunstâncias históricas, que são o ponto de chegada de determinadas condições tecnológicas, cognitivas, estratégicas, organizacionais e institucionais conquistadas (e às vezes perdidas) pelos fazeres e relacionamentos quotidianos, estes, por sua vez, resultando dos incessantes jogos de interesses e poder que configuram a vida humana tal como é vivida. Na medida em que esses jogos de interesse e poder engendram novas formas de relacionamentos interpessoais e sociais, sucedem-se “momentos históricos” que se distinguem entre si. A periodização da História em Antiga, Média, Moderna e Contemporânea, por exemplo, se baseia nesta percepção, assim como subfases desses amplos períodos. Com base nessas classificações (nunca livres de algum grau de arbitrariedade), fica claro que o tempo, para o ser humano, nunca é simplesmente cronológico (um imutável “passar” que pode ser medido pelos relógios), por ser essencialmente marcado pelas diferentes condições de vida propiciadas pelas mudanças que os próprios seres humanos provocam na natureza em geral e na sua própria, impactando a noção de tempo (momento histórico), então dividido entre passado, presente e futuro, interconectados entre si.
A passagem de um momento histórico para o outro não se dá abruptamente, ocorrendo passo a passo, com potenciais retrocessos seguidos de retomadas, às vezes sem que seja possível perceber.
Na passagem do século XX para o XXI há indícios fortes de uma dessas viradas que modificam o tempo histórico, o modo compartilhado pelos indivíduos para tomar decisões e agir, com base em expectativas que se renovam. Enquanto a mudança não se completa, o que era está deixando de fazer sentido, enquanto o que será ainda não faz totalmente sentido, nas vidas que seguem seu curso, batalhando pela sobrevivência e lidando com as restrições e possibilidades políticas.
No relato de viagem que estou escrevendo aos poucos (Quando eu fui a Macau), minha intenção é chamar a atenção para o fato de que em 1998 (ano daquela minha viagem) o novo modo de viver, sob o capitalismo global impulsionado pelas finanças privadas livres de restrições fronteiriças entre países, típico dos século XXI, estava se desenhando com fortes tintas no Sudeste Asiático, à frente os chamados Tigres Asiáticos (Hong Kong, Singapura, Taiwan e Coreia do Sul), que estavam abrindo passagem para um tipo de economia dominante, cujo principal representante viria a ser a China. Naquela região a vida quotidiana passava, no final do século XX, por transformações tão profundas e notáveis que ali se podia olhar para o tempo futuro como quem observa de um mirante toda a parte abaixo, alcançando longas distâncias. Este relato, portanto, está longe de ser, ou pelo menos se esforça para não ser, um simples lance de história pessoal. Embora seja pessoal (afinal, é relatada uma experiência individual de viagem), tem os olhos fixos no social, no histórico comum a todos: procura captar acontecimentos que configuram uma tendência de mudança. Procura chamar a atenção para um momento específico em que o ponteiro histórico está avançando. Nunca mais viveremos como antes de tudo aquilo que no final do século XX aconteceu ali no Sudeste Asiático. Se hoje é fácil fazer esta afirmativa, naquele tempo só era possível notar que algo estava acontecendo na maneira como cada um de nós se sente sendo e agindo e interagindo, ao longo do tempo, com os demais e com o mundo.
Acompanhe com este olhar meu relato Quando eu fui a Macau. Só assim ele terá algum significado, ligado às minhas preocupações relacionadas à busca de compreensão do que é o tempo. Como reforço, lembro o que dizia Milan Kundera, em A cortina: "...o alcance existencial de um fenômeno social não é perceptível com maior acuidade no momento de sua expansão, mas sim quando ele se encontra em seus primórdios, incomparavelmente mais fraco do que se tornará depois"
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