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Cidades visíveis: Shanghai

  • Foto do escritor: Valdemir Pires
    Valdemir Pires
  • 14 de jun.
  • 9 min de leitura

De volta à costa marítima chinesa, agora Leste, depois de ter entrado no país pela costa Sul. Voo matutino tranquilo, de duas horas, pela China Express Airline, do Chongqing Jiangbei International Airport ao Shanghai Pudong International Airport. De um lado, a janela do avião; do outro, um chinês de uns quarenta anos, inglês fluente, aparentemente um executivo, amigável e falante. Deu dicas de hotéis, comidas, passeios, permeadas por efusivos elogios à cidade de destino e ao seu país.

 


– O castelo da Disney de lá, inaugurado em 2016, é o maior de todos os parques da empresa. Não perca! A vista panorâmica de cima dos 320 m do Sinar Mas Plaza é de tirar o fôlego – vale o preço. Sabia que o touro-símbolo da Bolsa de Valores da cidade, no Bund, é obra do mesmo artista que fez o de Wall Street, Arturo Di Modica?


 

Pergunto o que é o Bund e ele responde informando que é um trecho de dois quilômetros ao longo do lado Oeste do rio Huangpu, de onde se pode apreciar o Pudong, do outro lado, com seus mais icônicos arranha-céus, lindamente iluminados à noite. No Bund se caminha contemplando belos edifícios do início do século XX, revitalizados em 1986 e em 2010, e também iluminados à noite. Abstenho-me de perguntar o que é o Pudong.

 


Shanghai (ou Xangai) talvez seja a mais expressiva foto de corpo inteiro da China atual. Potência econômico-financeira e tecnológica, sem perder seu ar de lugar em que se manifesta, sutil como sempre, a “milenar sabedoria chinesa”, é uma cidade global, cosmopolita, multicultural, sem abandonar suas raízes culturais fincadas num passado de resistência e de reinvenção de si a cada nova era. Não só por isso, é uma das mais lucrativas cidades turísticas do mundo (já tendo sido a primeira nesse quesito), dotada de centenas de hotéis de alto nível e milhares de agências de viagem, que atendem os chineses vindos de todas as partes do país e um crescente fluxo de visitantes do mundo todo, vindos a turismo e a negócios.

 


Xangai é, mesmo, um lugar privilegiado para “negócios da China”, conquistando a condição de quinta cidade mais rica do mundo e de berço (esplêndido) da sexta maior aglomeração de bilionários do planeta. As “minas de ouro” são várias, ali: cinquenta por cento da riqueza vem das áreas financeira (3º maior centro do mundo, depois de Nova York e Londres, sede do Banco dos BRICs), varejista, imobiliária, industrial (máquinas e veículos), logística/transporte e tecnológica (especialmente inovadora, com inúmeras fintechs). Atividades essas desenvolvidas por uma população que gira em torno de 29 milhões de habitantes (perdendo apenas para Chongqing), os estrangeiros representando um pequeno percentual. 

 


Xangai não para e parece não se cansar. Circular pelo distrito financeiro e de negócios ou pelas zonas culturais e de lazer prestando atenção à movimentação provoca aceleração cardíaca em quem não está habituado. As pessoas, em grande número, vêm e vão como se estivessem correndo atrás de algo que precisam/desejam agarrar, este algo não sendo exatamente material. São multidão também nas praças, imensos shoppings centers e nos numerosos parques públicos (mais de 300, a maioria de entrada gratuita), mas nesses lugares, o que aparentam é estar se apropriando de algo seu, de que se orgulham, fotografam, elogiam. A famosa Praça do Povo bem merece este nome.

 


Quando perguntei ao meu parceiro de viagem aérea de Chongqing a Xangai sobre as longas e intensas jornadas dos trabalhadores da cidade, que os ocidentais acusam de desumanas, ele me respondeu:

 


– Na China, sempre trabalhamos muito. Antes, por pouco, tanto para todos, como para cada um; hoje, trabalhamos por muito mais, para todos e para cada um – por isso trabalhamos satisfeitos, orgulhosos, até. Circule pelas ruas e veja você mesmo.

 


Abri mão de questionar sobre a concentração de renda... aliás, fenômeno crescente também nos países ocidentais. Mas não resisti a dizer que meu trajeto tinha começado por onde o capitalismo penetrou na China – Hong Kong – desde que Xiaoping abriu as portas com suas reformas, esperando uma correção do tipo: “Capitalismo, não: socialismo de mercado.”  Mas o que ouvi foi:

 


– Pois então você escolheu o lugar errado para iniciar sua viagem. Deveria ter partido de Xangai. Por que? Porque Xangai era um paraíso do capital estrangeiro na China, antes do comunismo: franceses, ingleses, americanos etc. Depois da Revolução, em 1949, houve a fuga desse capital para Hong Kong.

 


Concordando com esta afirmação, bastante razoável (pois Xangai foi o mais importante centro comercial e financeiro da Ásia/Pacífico nos anos 1930 e a 5ª maior cidade do mundo em 1932, com forte presença de ingleses, franceses e americanos, além de ter sido um porto importante no século XVIII), há que se aceitar que o capitalismo (embora sob roupagem ideológica distinta a cada vez) agiu na China como um bumerangue: saiu de Xangai (lançado para fora pelo Partido Comunista), bateu em Hong Kong, voltou para Xangai (acolhido pelo Partido Comunista); na volta, deixou rastros por todo lado; e foi, então, lançado em todas as direções de costa a costa; continua circulando, e brilhando interna e externamente como socialismo de mercado, o modelo chinês.

 


Ao nos despedirmos no desembarque, as últimas palavras de meu “amigo” chinês, ao transmitir seu cartão de visitas para meu celular foram estas, talvez carregadas de ironia (não sei...):

 


– Não se vá sem antes encontrar e visitar – sim, fica aqui em Xangai – o edifício onde foi fundado o Partido Comunista da China, o cérebro e a espinha dorsal de tudo que nos tornamos, somos hoje e desejamos continuar sendo no futuro. Também compre alguma coisa ou tome um café na Nanjing West Road. Boa estadia!

 


Estando o meu hotel próximo do logradouro recomendado, fiz check-in, acomodei as malas, tomei um banho e fui para lá, pensando em almoçar. Não sei se há outro lugar no mundo que supere o que existe na Nanjing West Road: se não todas, a grande maioria das marcas globais da alta relojoaria e da alta costura estão ali! O crème de la crème do consumo capitalista. Versus o ponto de origem do comunismo chinês, em endereço não muito distante. Sim, meu parceiro de voo despediu-se com profunda ironia. Do mesmo modo, a China parece zombar do mundo todo com seu socialismo de mercado, concebido e construído sob um lema atribuído a Deng Xiaoping: “Não importa se o gato é branco ou preto, desde que ele cace os ratos.” (E se os ratos, apossando-se da “milenar sabedoria chinesa”, aos poucos ou de repente, se tornarem os porcos da “Revolução dos Bichos”?)

 


Tomado por essas reflexões, fui em busca de comida, pois a fome começou a apertar. Comida é o que não falta, em Xangai, desde as servidas em restaurantes internacionais finos até as populares (e saborosíssimas) comidas de rua, passando pelos insossos sanduíches e frangos fritos do McDonald e do KFC. O chá é onipresente, como em toda a China, mas o café é a bola da vez, servido por novas empresas nacionais e também pelas oportunistas redes americanas, como a Starbucks e a Peet's Coffee & Tea.

 


Comer, beber e transitar: isso tudo se faz em Xangai como se se tratasse de respirar. Há muita gente andando pelas vias, atravessando-as com uma disciplina invulgar – afinal, se não fosse assim, esbarrariam uns nos outros e não conseguiriam seguir em frente, em algumas áreas e em certos horários; policiais auxiliam essa movimentação, ao mesmo tempo que vigiam para evitar desobediências à regras (como atravessar fora da faixa de pedestre). Bicicletas, motocicletas e motonetas dividem o espaço com pedestres, com suas insistentes e estridentes buzinas, sem as quais é provável que atropelamentos seriam em grande número. Podem ser vistas estacionadas nas beiras das calçadas, em fileiras imensas, ao lado de veículos a gasolina de luxo, que também não são poucos, misturados aos elétricos. As bicicletas desfrutam da vantagem de um terreno plano  (Xangai está numa planície com poucas colinas) e da introdução de compartilhamento via aplicativos (mais de um milhão de usuários por dia) e da relativa abundância de ciclovias. Os bondes são poucos agora (introduzidos em 1908, foram desarticulados em 1975), pois foram substituídos por uma vasta frota de ônibus novos, que auxiliam o escoamento feito pelo moderno metrô (826 km e 508 estações: maior do mundo) e, desde 2004, por trens maglev, que praticamente voam (430 km/h). Metrô, trens, ônibus e táxis (uma frota onipresente nas áreas de maior fluxo) são acessíveis por meio de um único cartão magnético ou de um app no celular facilmente adquiridos. Ônibus e táxis circulam fluindo bem em vias expressas de alta qualidade, bem sinalizadas e fortemente vigiadas pelas autoridades de trânsito, que articulam as vias secundárias.



Onde quer que se vá, tudo limpo, no mais das vezes arborizado e não raro ajardinado. Só o ar, poluído, continua sendo objeto de preocupações e medidas efetivamente tomadas. Por exemplo, redução do número de veículos a combustão. Como em qualquer lugar do mundo, veículos automotores precisam ostentar placas. Em Xangai, não basta comprar o carro e obter a placa ao licenciá-lo: elas são leiloadas, em número reduzido, mês a mês, e não custam pouco, disponíveis apenas para residentes permanentes. Menos carros poluindo e, também, menor o tráfego de veículos individuais, sem o inconveniente (como no Brasil) de um transporte coletivo insuficiente e de baixa eficiência/qualidade.

 


Em termos de trânsito e transporte/logística, Xangai está conectada à China toda e ao mundo. Ferrovias, linhas aéreas e marítimas são pontos fortes de sua economia, com seus portos, aeroportos e sistema ferroviário de alta tecnologia e ousada concepção. Além disso, um imenso contingente de entregadores de encomendas urbanas, uniformizados e altamente eficientes, circulam pelas vias como sangue pelas veias, a pé, de bicicleta ou de motocicleta, facilmente acionáveis, por aplicativos.


 

A Xangai colocada na vitrine principal para não-chinês ver é a do Bund, de um lado (Oeste), e a do Pudong, onde se destaca Lujiazui (símbolo do retorno do captal estrangeiro a Xangai), do outro lado (Leste) do rio Huangpu (um afluente do Yangtzé, que garante o abastecimento da cidade e é também um veio de tráfego e uma atração turística, cuja história pode ser conhecida no livro de Yueya Chang. Mas a cidade é muito mais que isso, com zonas de perfil menos exuberante e futurista, onde a vida quotidiana transcorre de modo prosaico, muito semelhante ao que se vê em outras áreas urbanas desenvolvidas do mundo todo, com a diferença, talvez, de que Xangai está há décadas se reconstruindo e se ressignificando em termos urbanísticos, arquitetônicos e de condições de moradia e trabalho para multidões. A integração viária dessas partes todas de Xangai é notável, por meio de um sistema viário extremamente amplo e complexo, dotado de muitas “prateleiras” de tráfego: vias rodoviárias sobrepostas  que se cruzam em várias direções, algumas iluminadas coloridamente à noite, proporcionando belas visões.



Há também locais de preservação arquitetônica, onde se pode comer, beber e comprar em estabelecimentos que funcionam nos prédios preservados das épocas das presenças britânica, francesa e americana em Xangai. São museus a céu aberto que se juntam a tantos museus convencionais notáveis (o Museu de Arte da China, o Museu de Xangai, por exemplo), monumentos, galerias e centros culturais, como o Templo Cidade de Deus (de 1602) e o Jardim Estufa. Este, um imenso complexo em aço e vidro que abriga espécimes de vegetação de todo o mundo, mantidos com um cuidado incomum. A forma como foi construído permite caminhar por horas observando aspectos de biomas e apreciando belezas vegetais, sob luz natural. É um fenômeno de engenharia, de investimento público de qualidade, de preservação vegetal e, não menos notório, de admirável apropriação pela comunidade: extrema limpeza, absoluta organização, nenhum vestígio de depredação. Nos gramados do lado de fora, populares acampam (com pequenas barracas) e fazem piqueniques, fascinados e alegres.



No subdistrito de Pudong está Lujiazui, o distrito financeiro com gigantescos edifícios, como a Shanghai Tower (632 m), o Shanghai World Financial Center (o “abridor de garrafa”, com 492 m) e a Jin Mao Tower (420 m), compondo, à noite, com a Torre Pérola Oriental (468 m) e outros tantos prédios admiráveis, o cenário de um espetáculo de luzes e cores refletido sobre as águas do Huangpu. Para apreciá-lo (e fotografá-lo e filmá-lo abundantemente) uma multidão se acumula em suas ruas e também do outro lado do rio, aproveitando para comer, beber, divertir-se, usufruinbdo das inúmeras oportunidades que os setores comerciais, de serviços e de entretenimento ali oferecem para todos os gostos, do refinado ao popular.

 


Nas andanças pelos diferentes lugares de Xangai, está-se sempre em companhia de uma grande quantidade de pessoas de diferentes idades. E nota-se que existe ali uma numerosa classe média, que se beneficia do consumo e, portanto, propicia vendas e produção em níveis elevados. Produção essa que, por sua vez, se beneficia de um contingente de trabalhadores qualificados, originários de um sistema educacional que tem obtido excelentes desempenhos em avaliações internacionais e conta com universidades como a Fudan e Jiaotong, que geram o 5º. maior volume de pesquisas do mundo. Indústria, tecnologia, renda relativamente bem distribuída (sem todavia coibir totalmente a emergência de milionários e bilionários) são as engrenagens da megalópole vibrante, entusiasticamente consumista, ansiosa por espetáculos.



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