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O quebra-cabeças do nosso jeito de viver

  • Foto do escritor: Valdemir Pires
    Valdemir Pires
  • 9 de jul.
  • 5 min de leitura
Imagem: Wix
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Dê uma pausa, uma pequena pausa, de poucos minutos. Deixe por um momento a competição profissional, a preocupação com o padrão de vida a sustentar, a manutenção da imagem ditada por alguma vaidade, o medo de desperdiçar tempo achando que isso é perder dinheiro. Esqueça, por uma minúscula fração de dia, o seu jeito de viver. Venha comigo!

 

Olhe estas peças de um quebra-cabeças misturadas sobre a mesa. Veja: estou desmanchando o monte e distribuindo-as sobre o tampo de vidro, de modo que possamos ver cada uma delas e perceber sua forma, o desenho que contêm, suas cores.

 

Agora tome: pegue esta peça, aqui, em suas mãos. Observe, prestando atenção. Feche os olhos, respire fundo; reabra os olhos, fixe-os nela por uns segundos. Veja do que se trata. É uma velhinha japonesa, em Tóquio.

 

Vamos para mais algumas peças. O mesmo exercício para cada uma. O que você vê? Um: seis crianças na faixa de um a sete anos, na capital do Mali, Bamaco. Dois: em Los Angeles, um grupo de jovens na rua. Três: um operário da construção civil, em Dubai. Quatro: um jovem chinês, em Xangai. Cinco: um rapaz negro, forte, alto e magro, na França.

 

O que fazem essas pessoas espalhadas pelo mundo? A velhinha está presa, não contra sua vontade: praticou um pequeno delito para ser levada ao presídio, onde terá a companhia e os cuidados que lhe faltam no minúsculo apartamento em que vivia só. Como ela, muitas outras em vibrantes cidades japonesas.

 

As seis crianças são da mesma família. Desnutridas e maltrapilhas, brincam entre si nas proximidades de um casebre, em meio à poeira e ao lixo espalhado. Isso num país em que a taxa de fertilidade é das maiores do mundo, enquanto na Europa esta taxa declina para níveis alarmantes; ao passo que na China abandonou-se a política de um filho por família e passou-se a incentivar os casais a aumentar a prole.

 

O grupo de jovens é constituído por duas moças (uma loirinha americana e uma colombiana), três rapazes afrodescendentes e outros dois brancos que tanto podem ser latino-americanos como europeus (não é possível definir pelas aparências). Caminham cabisbaixos, laconicamente conversando, aparentemente sem rumo, pela avenida cujas calçadas estão tomadas por barracas de acampamento, sucatas, lixo, outros seres humanos em situação degradante. São vítimas de opioides, uma peste química que se alastra pelo mundo afora, juntamente com outro "ópio do povo", baseado em livros canônicos oportunisticamente interpretados.

 

O pedreiro que trabalha nas obras de mais um arranha-céus em Dubai é um paquistanês de vinte e quatro anos, que deixou a família miserável para trás e foi em busca de melhores condições de vida. A extensão absurda da sua jornada diária não lhe deixa tempo para avaliar o quão pouco conseguiu: sai muito cedo de onde mora e chega muito tarde de volta – um cubículo com parca mobília rústica, vizinho a outros igualmente precários.

 

Com sua motoneta elétrica, o rapazinho chinês vindo de antiga zona rural, incapaz de saltar a enorme barreira para chegar à faculdade, faz entregas das sete às onze horas da noite, para complementar a renda que obtém como faxineiro na Torre de Xangai, das oito da manhã às cinco da tarde.

 

O vigoroso rapaz negro atravessou o mar, arriscando a vida numa embarcação decrépita e superlotada para chegar à França, onde foi retido pelas autoridades da fronteira que defendem os empregos franceses para os cidadãos franceses; se não for logo devolvido, aguarda-o um futuro absolutamente incerto, nada parecido com o que ele sonhou ao partir: um salário de pobre em lugar da miséria de pescador nas costas da África.

 

Basta, por ora. Deixemos as outras tantas peças amontoadas na mesa, com suas figuras ao mesmo tempo tão diferentes e tão parecidas. Vamos tentar encaixar estas poucas que temos aqui, já inspecionadas superficialmente. Elas se encaixam? Vamos ver.

 

Elas têm formas, cores, espessuras muito diferentes, apesar de serem feitas do mesmo material (vidas humanas)... Temos que encontrar pontos de contato, côncavos e convexos. Vejamos. Difícil...

 

A única coisa que podemos perceber é que apesar de cada uma dessas pessoas estarem, geograficamente, muito longe umas das outras (em que pese as crianças africanas e os jovens nos Estados Unidos aparecem juntos), essa gente toda está muito próxima quanto à condição de vida – é nisso que as peças do quebra-cabeças se encaixam. As perspectivas diante de todos esses indivíduos é sombria e eles buscam a luz como o afogado busca o ar. Sentindo-se vivos, seguem em frente, porque a alternativa é pior. Não são necessariamente infelizes, mas certamente não são felizes no sentido convencional com que se define esta palavra fugidia.


O esforço para ver um pouco mais, depois de secar um princípio de lágrimas com o lenço de papel, revela três compartimentos, dois extremos e um intermediário. Delineados com base em idades: crianças que ainda não valem nada; velhos que já não valem nada; jovens que valem pouco, desde que adquiriram alguma habilidade produtiva e enquanto lhes durar o vigor laboral e sem que barreiras nacionais impeçam migração de potenciais trabalhadores.


Não será necessário analisar as milhares de peças do quebra-cabeças para concluir que as poucas já observadas são representativas do todo.

 

Não será preciso prosseguir no esforço de montar o brinquedo. Não há como encaixar as peças umas nas outras. Fisicamente isso é impossível. Os atritos são inevitáveis. São a força bruta (secundariamente) e a ilusão poderosa (primeiramente) que evitam uma explosão definitiva; truculência e engodo é que promovem falsos encaixes, muito funcionais para a continuidade da “brincadeira”.

 

E eis que desponta na mente e no coração um último vislumbre: embora descartáveis, cada uma das peças deste quebra-cabeças é imprescindível; imprescindível não para que ele seja finalmente montado e possa ser visto no seu todo intrigante, talvez pavoroso; imprescindível, isso sim, para que não ocorra a desistência generalizada de contribuir para a montagem, abandono que paralisaria, afugentaria ou enfureceria aqueles sem cujos rostos anônimos e vidas desconsideradas (a não ser quando úteis a fins outros que não a vida, propriamente) o quadro final seria outro, muito diferente, ou, mais provavelmente, nada seria.

 

Agora dê outra pausa, uma pequena pausa, de poucos minutos. Deixe por um momento a competição profissional, a preocupação com o padrão de vida a sustentar, a manutenção da imagem ditada por alguma vaidade, o medo de desperdiçar tempo achando que isso é perder dinheiro. Esqueça, por uma minúscula fração de dia, o seu jeito de viver. Prossiga consigo mesmo! De minha parte, estou fazendo o mesmo há tempo. E lhe digo que não é bom nem ruim. É necessário, pois talvez assim reencontremos o que algum dia valorizamos de verdade (e hoje o fazemos em vagos discursos): a vida humana, a Humanidade, como fim e não como meio servindo a sabe-se lá o quê.

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