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  • Foto do escritorValdemir Pires

O luto e o tempo



O luto é um sentimento de dor, pesar ou tristeza que, ao ser transformado num rito, abarca um período de tempo, como, por exemplo, no caso da viúva (e, incrivelmente, menos do viúvo), que deve vestir preto depois da morte do marido. Tempo de recolhimento à escuridão é uma imagem comum do luto, imposto pela morte.

Não há luto sem morte. Se o marido foi à guerra e não voltou, o retorno deixa de ser esperado somente muito tempo depois e, ainda assim, o luto não se coloca por inteiro – ele tem a ver com um corpo inerte, que não mais respira, vem depois do sepultamento ou cremação.

A importância do luto está no fato de ele ser um momento de passagem de um tempo a outro. Deixa-se o tempo em que o motivo do luto vivia e passa-se ao tempo em que ele não vive mais. É difícil para o ser humano ser lançado imediatamente de uma situação a outra – o luto é necessário. Necessário como passageiro, como momento, e não como o resto do tempo daquele que vive depois que o outro morreu, pois neste caso torna-se morte em vida. Há que se lutar contra o luto, depois que ele cumpriu sua função. E isso nem sempre é fácil.

O luto se aplica às mortes daqueles que são próximos. É forte nos casos do pai, da mãe, do filho, do marido, da esposa, do amigo, do vizinho. Ampliando-se a distância chega-se ao extremo das pessoas desconhecidas, pelas quais não se guarda luto. Portanto, assim como deve declinar com o tempo, a dor do luto arrefece em relação ao espaço, à distância daquele que falece.

Uma pessoa que passe por vários lutos em curto espaço de tempo, ou que o enfrente simultaneamente em relação a vários entes queridos, sofre tamanho abalo que corre o risco de não mais se reerguer. Assim, se a compaixão humana fosse mais profunda do que é, todos viveriam permanentemente de luto, porque amando profundamente o outro, quem quer que seja e onde quer que esteja, todas as mortes que ocorressem levariam ao luto e isso seria insuportável, pois o luto seria permanente, inviabilizando a vida. De modo que amar (que traz o risco de sofrer pela perda definitiva do ser amado) impõe seletividade, involuntária, mas ainda assim, seletividade.

Como o luto, ou algo próximo dele, se aplica não somente à morte, stricto sensu, mas também a outros tipos de perda, é preciso cuidado. Isso porque as perdas de coisas e situações próximas podem ser em volume assimilável, mas as perdas de coisas e situações distantes são muitas (assim como de pessoas). Em eras de fim de tudo (da História, de Deus, do romance, do indivíduo, do humanismo, do meio ambiente, da ideologia etc., etc., etc.) vive-se o tempo todo diante da morte e do desaparecimento de coisas e situações que são caras e queridas. O sentimento de luto se torna desamparo e desesperança, às vezes desespero. Daí a importância do perspectivismo ao lidar com o mundo “em decadência”: ao longo da História tudo aparece e desaparece, tudo passa e pode voltar – viver é não se deixar cair da gangorra e viver bem é aprender a gostar do movimento que a gangorra faz ou, pelo menos, não desgostar totalmente...

Luto, sabe-se, se combate com luta. Uma luta interna contra a morte e a sensação de morte; luta que afirma o tempo por vir, ameaçado pela sombra de um tempo que se foi. O período de luto tem que ser aquele em que essa luta é travada – sua duração depende de cada caso, mas, em todo caso, não pode ser tão grande que açambarque muito tempo da vida do enlutado. Para que assim seja, a luta no tempo do luto deve ser algo como uma caminhada em que se deixa de olhar para trás, para a vida que se foi, e se passa a olhar para a frente: para as vidas que estão ou estarão ao redor, clamando por atenção e afeto e oferecendo atenção e afeto de volta. É vitoriosa a luta contra o luto que consegue empreender o retorno ao tempo vívido (presente), povoado de outras vidas, não deixando o tempo vivido (passado) para trás, mas carregando-o para diante com seu devido peso, nunca maior do que o do tempo por viver (futuro).

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