
(Um manifesto aos participantes do XIII ENEAP e do XIV FP3CP - Rio de Janeiro, 16-20/07/2014)
O ensaio é um tipo de texto para o qual a academia torce o nariz, quando não o pescoço do autor, se ele bobear. Se, por um lado, uma parte dessa animosidade se deve a uma mentalidade “quadrada”, decorrente de uma visão enviesada acerca do método (principalmente quando o neopositivismo finca o pé nas Humanas e Sociais), por outro lado o gênero ensaístico tem sua dose de culpa: ele é irreverente, para dizer o mínimo, especialmente quando contraposto à sisudez dos textos científicos padronizados (de grande ou de duvidosa qualidade comunicativa).
Não há que se negar, todavia, o poder do ensaio que deriva, exatamente, da sua hibridez, especialmente se lavrado por boa pena. Ao combinar razão com imaginação, ciência e arte, o ensaísta se dirige ao leitor que pensa, mas sente; ou que sente, mas pensa. Dirige-se, pois, ao indivíduo que, como ele, não distingue com exatidão as fronteiras do cérebro e do coração; e nem se preocupa em demasia com isso.
Quando Saramago escreve seu consagrado “Ensaio sobre a lucidez”, seus leitores são levados a uma compreensão dos limites e dilemas da democracia representativa que nenhum teórico, com seus tratados e artigos em periódicos especializados, poderia conduzi-los. O leitor “avisado” entra pela porta literária e sai pela janela científica, mesmo que não se dê conta disso. O desatento, ao menos, tem seus radares ativados para uma das mais complexas questões de seu tempo. Ninguém passa incólume: o que nos aconteceria se o rito das eleições falhasse e nada existisse para substituí-lo? Ao mesmo tempo, qual a seriedade e efetividade dessa forma de lidar com o poder? Num só texto, mais do que a obra inteira de Norberto Bobbio poderia destacar aos leigos, isso se eles se aventurassem à leitura deste gigante da Filosofia Política.
Isto que Saramago fez com relação à representação política, seria muito conveniente que alguém de talento fizesse com a gestão. Se o autor do belíssimo “Memorial do convento” desenha, na mente e na alma de quem lê o “Ensaio sobre a lucidez”, o desastre que seria a falência definitiva da democracia de massas tradicional, deixa em aberto, por sua vez, um problema de igual gravidade: o quanto a gestão, com sua peseudoneutralidade, tenta, e vai conseguindo, deslocar ou substituir a política na organização das relações sociais, colonizando, sub-repticiamente, também as relações interpessoais de qualquer natureza.
Enfrentar este tema daria um alentado ensaio sobre a estupidez, que consistiria em trazer à tona – com a leveza e a graça que só o ensaio pode atingir – o quanto razão demais, às expensas da sensibilidade, pode resultar no seu contrário. É verdade que Gaulejac[1] já pôs o pé nesta praia. Mas para seguir mar adentro, sem risco de afogamento, é preciso um ensaio que penda mais para o artístico e menos para o “científico”. Estragos à alma só se consertam com instrumentos e habilidades que a razão, por si só, não alcança.
Um tal ensaio sobre a estupidez demonstraria – ou melhor, faria ver, quiçá sentir, sem querer exatamente demonstrar – que os arroubos científicos (supostamente neutros, repita-se) das teorias e proposições contemporâneas no campo da gestão, com suas especificidades na gestão pública, não passam de um esforço claramente taylorista, só que agora aplicado à sociedade do conhecimento, para subordinar a mente e a alma dos novos trabalhadores, que já não são o “homem cavalo” do res-de-chão da fábrica, cujos movimentos Taylor quis cronometrar e agilizar, mas sim os detentores de “capital humano” das “estações de trabalho” informatizadas e conectadas 24 horas por dia, 365 dias por ano. Burocratas taylorizadores, agora sendo taylorizados. Teóricos tayloristas (com ou sem consciência disso), recebendo de volta o mal que impingiram aos operários. O pensamento não podendo mais vagar, sob pena de perder a vaga na indústria do conhecimento, ficando, por decorrência, sem dinheiro para comprar na indústria do entretenimento. Brisa e vento, que varrem, por onde passam, o que não tenha a sua feição.
Uma vez isto percebido, ficaria claro, aos professores e pesquisadores, do que se trata e com o que se lida quando, em seu ambiente de trabalho, lhes são cobrados índices de desempenho relacionados à produção científica e ao trabalho pedagógico. A ninguém seria difícil compreender a “doença da gestão” (Gaulejac), subordinando tudo a rotinas, procedimentos, processos e avaliações parametrizados única e exclusivamente pela produtividade, sem qualquer questionamento do tipo “para quê?”, “para quem?”, “às custas de quem?”, “com que consequências sobre a qualidade de vida dos indivíduos e da sociedade?”. Planilhas, rankings, cálculos de impacto de publicações, pontuações e premiações para determinados fazeres em detrimento de outros, ênfase ao ensino à distância, imposição de novas tecnologias em sala de aula (quando esta sobrevive), perderiam, todos, sua inocência.
Os estudantes e pesquisadores júniores, por seu lado, logo se dariam conta do quão temerário é orgulhar-se do domínio de técnicas densas em patologias, desejando ocupar espaços no mercado de trabalho para difundi-las, achando que elas não podem se voltar contra eles próprios. Teriam mais interesse pelas questões que seus professores e orientadores tão corriqueiramente têm abandonado, por que a coisa não é científica: “para quê?”, “para quem?”, “às custas de quem?”, “com que consequências sobre a qualidade de vida dos indivíduos e da sociedade?”.
É claro que o aludido ensaio sobre a estupidez não poderia deixar de considerar que a gestão, de fato, amplia sobremaneira a produtividade, e que esta eleva os padrões de vida em termos de possibilidades de consumo e de conforto. Portanto, não poderia, jamais, se posicionar contra as técnicas e tecnologias administrativas. Teria que se limitar, para não ser, por sua vez, também estúpido, a iluminar os aspectos doentios e subordinadores por elas trazidos, pelo seu excesso. E poderia avançar no debate sobre como identificar o que é excessivo e o que não é, sem o abominável medo que os neopositivistas têm por tudo que é normativo (como se tudo pudesse ser objetivo!).
De um país como o Brasil – tão novo; tão híbrido; tão heterogêneo; tão recentemente colonizado pelo cientificismo e pelo administrativismo (embora com uma elite tão fascinada por eles nas últimas décadas); tão alegre, que talvez esteja vacinado contra a colonização do “mundo da vida” pelo “mundo dos sistemas” estudados por Habermas –, desse país, bem que poderia brotar o ensaísta necessário, cheio de brios nacionalistas (mas permanecendo cosmopopolita e não se deixando levar por qualquer xenofobia). Alguém como Celso Furtado ou Guerreiro Ramos, capazes de fazer avançar o conhecimento econômico e administrativo (respectivamente) de modo articulado com os desafios socioeconômicos e político-ideológicos de seu tempo, evitando, a todo custo, simplesmente copiar ou assimilar visões de mundo e teorias de alhures (tantas vezes convenientes aos interesses de alhures) – homens do mundo, que cortaram o cordão umbilical para voar, mas não se esqueceram de que tiveram um; e que não se limitaram ao nauseabundo hábito narcisista de passar o tempo todo olhando para o que restou dele sobre o ventre.
O ambiente acadêmico brasileiro é propício a que um tal ensaísta, um tal pesquisador, um mestre de tal envergadura venham a surgir? Ele é, hoje, favorável a relações de ensino-aprendizado e de orientação criativas, que dialogam com os problemas enfrentados pelas pessoas e instituições no seu quotidiano? Ele está produzindo egressos com capacidade para ajudar o país a encontrar seus rumos e aproveitar as oportunidades lhes são apresentadas? Ou ele está na contramão dessas possibilidades? Ou ele anda ensimesmado? O seu produtivismo científico de natureza taylorista e as suas propensões à inovação pedagógica “desresponsabilizante” não anda atingindo um grau de insensatez que cabe questionar?
Bem, não seriam estas, também, questões para um ensaio sobre a estupidez acadêmica?
[1] GAULEJAC, V. La société malade de la gestion: idéologie gestionnaire, pouvoir et harcèlement social. Paris: Editions du Seuil, 2005.
Opmerkingen