A Lei Complementar no. 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal - LRF), em seu artigo 48, § 1º, inciso III, estabeleceu como instrumento de transparência da gestão fiscal a “adoção de sistema integrado de administração financeira e controle [SIAFIC], que atenda a padrão mínimo de qualidade estabelecido pelo Poder Executivo da União e ao disposto no art. 48-A [da mesma lei]”. Este artigo 48-A foi acrescentado à LRF pela Lei Complementar 131/2009, voltada à transparência fiscal em tempo real, na internet; ele obriga os entes públicos à disponibilização de uma lista de informações e demonstrativos.
Somente uma década depois, por meio do Decreto no. 7.185 (de 27 de maio de 2010), referido padrão mínimo de qualidade do SIAFIC foi regulamentado, laconicamente. Definiu-se como SIAFIC ao conjunto das “soluções de tecnologia da informação que, no todo ou em parte, funcionando em conjunto, suportam a execução orçamentária, financeira e contábil do ente da Federação, bem como a geração dos relatórios e demonstrativos previstos na legislação” (art. 2º., § 2º, inciso I).
Passaram-se outros dez anos para surgir o atual Decreto 10.540 (de 5 de novembro de 2020), o qual, revogando o anterior, dispõe mais detalhadamente “sobre o padrão mínimo de qualidade do Sistema Único e Integrado de Execução Orçamentária, Administração Financeira e Controle.”. E, note-se, SIAFIC se tornou, de fato SIEOAFIC – sigla impronunciável. Melhor manter SIAFIC (como foi feito), mas com atenção para o fato de que foi acrescida ao sistema, tardia mas corretamente, a execução orçamentária, que não se confunde com a administração financeira, embora caminhe junto com ela.
A observação atenta da cronologia dessa legislação leva a uma inevitável conclusão: de década em década, alguma “boa alma” (bem intencionada), acrescenta uma pitada de esforço legislativo para, enfim, melhorar a paupérrima prática de gestão orçamentária e financeira levada a efeito pelos governos nacional e subnacionais do país. E uma observação dos fatos concretos decorrentes desses esforços deixa a forte impressão de que, se não foram totalmente inúteis, nunca chegaram ao ponto desejado: que o dinheiro público seja bem gerido, no sentido econômico e financeiro (e não apenas enquanto prestação formal de contas, ao legislativo – poder fiscalizador das finanças públicas e à sociedade como um todo).
A novidade trazida pelo Decreto 10.540/2020 é deter-se sobre aspectos genuinamente econômico-administrativos aplicáveis à gestão orçamentária e financeira. Ele começa especificando elementos administrativos fundamentais que as soluções de tecnologia devem viabilizar enquanto SIAFIC (art. 1º.), embora no parágrafo 2º. peque por explicitar que são exigidos apenas “dados contábeis, orçamentários e fiscais”, esquecendo-se dos financeiros. No art. 2º. define, permitindo, então, distinguir entre elas, execução orçamentária, administração financeira, gestão contábil e controle da execução orçamentária e financeira. No art. 3º. reforça as exigências para os registros contábeis dos fatos e quanto aos demonstrativos básicos que devem ser a partir deles gerados.
Além disso, o decreto reforça uma vez mais os requisitos obrigatórios quanto à transparência via internet e se detém sobre aspectos genéricos da tecnologia da informação a ser utilizada (para que o sistema seja único, integrado e capaz de prover informações em tempo hábil).
Reza o artigo 18 do Decreto 10.540/2020: “Os entes federativos deverão observar as disposições deste Decreto a partir de 1º de janeiro de 2023.” Ao que, o sujeito atento e cético reagirá dizendo: “Duvido!”. E perguntará se foi feito o que, em seu parágrafo único, mencionado artigo estabelece: “Os entes federativos estabelecerão, no prazo de cento e oitenta dias, contado da data de publicação deste Decreto, plano de ação voltado para a adequação às suas disposições no prazo estabelecido no caput, que será disponibilizado aos respectivos órgãos de controle interno e externo e divulgado em meio eletrônico de amplo acesso público.”
Mesmo que este ou aquele ente federativo tenha providenciado o plano de ação determinado pela norma, há que se duvidar de sua qualidade: terá o plano cuidado do mais elementar e essencial, que é a qualificação de equipes para promover a mudança profunda preconizada? Mudança esta que requer passar de uma gestão focada em exigências de controle externo, fazendo uso de tecnologias da informação fragmentadas e atrasadas, para uma gestão com objetivos econômico-financeiros maximizadores dos recursos escassos bem aplicados a fins coletivos, com auxílio de tecnologias da informação de última geração (mais eficientes e também mais baratas, se bem contratadas).
Existe, na gestão pública brasileira, um profundo déficit de compreensão a respeito do que deva ser a gestão orçamentária e financeira de qualidade (ou seja, que cuida do caixa com competência e que trabalha com prioridades sociais com sensibilidade). A superação deste déficit passa por qualificação de pessoal do ponto de vista comportamental, gerencial e operacional, mormente quando se trata de adentrar o mundo (ainda relativamente novo no setor público) das tecnologias da informação integradas. Será que disso se está tratando nesse momento de novas exigências impostas pelo Decreto 10.540/2020? Ou está acontecendo o que sempre aconteceu no âmbito de governos locais e estaduais (e federal, em menor proporção) durante os momentos de mudança?: criam-se numerosas oportunidades de ganhos e lucros para consultorias e cursos destinados a preparar os funcionários públicos para as mudanças desejadas, e tudo que resta, depois da “onda inovadora”, são as equipes que não foram capazes de, efetivamente, absorver o que foi implementado (por consultorias) e ministrado (nos cursos), voltando à “vaca fria” quotidiana – ou seja, voltando a “correr atrás dos prejuízos” para atender às exigências do controle externo... Controle externo que, externo que é, jamais cuida das engrenagens internas da gestão orçamentária e financeira, limitando-se a dizer, quando elas arrebentam, que elas arrebentaram e não deveriam ter sido arrebentadas.
Quem vai ajudar os mais de cinco mil pequenos municípios brasileiros a lidar com esta “batata quente” que vai se tornar a exigência de atendimento ao disposto no Decreto 10.540/2020? As empresas fornecedoras de softwares, que podem até entender de tecnologia da informação (nem sempre à altura do requerido para o momento), mas que de finanças públicas sabem apenas implementar o necessário para que sejam feitos os registros contábeis e produzidos os relatórios formais definidos em lei?
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