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  • Foto do escritorValdemir Pires

Deus no tempo



Atemporal por natureza, por ter ela própria criado o tempo, a que estão submetidas todas as criaturas: essa uma condição da divindade. Assim, é um pecado (em relação ao dogma) e um erro (no que tange à lógica) intentar uma “história de Deus”, pois ele esteve antes do começo e continuará depois do fim – é eterno. Todavia...

Entretanto, ao longo da História, da humanidade, a presença divina é perceptível e, mais do que isso, suscetível de um enquadramento temporal no que se refere à sua “natureza”.

Na Antiguidade, não há Deus, mas deuses. Embora tenda a existir um deus supremo e outros abaixo deste, nos diferentes “sistemas” de crença, não se pode falar em monoteísmo. É como se houvesse uma “força tarefa” divina permanente, um comandando e outros cuidando de aspectos específicos do mundo e da vida (como na mitologia grega, por exemplo). Deus “surge” como constatação do temerário e do incompreensível na natureza, mormente pela observação do firmamento (Sol, lua, estrelas, constelações) e das forças naturais (montanhas, mares, rios). Deus é força além da capacidade humana e é “coisa” além da compreensão dos homens. A antropomorfização de Deus é recorrente e na Grécia atingiu seu apogeu, os deuses sendo praticamente homens, com a diferença de serem imortais. Havia espaço, ainda, para os semideuses. Também se observava uma quantidade de qualidades divinas em que características humanas e de animais e plantas se misturavam em seres divinos e semidivinos. Do panteísmo migrava-se para uma espécie de antropodeísmo.

Do panteísmo para o antropodeísmo e deste para o teocentrismo: o deus único dominador e incontestável, senhor da Idade Média. A grande marca do Ocidente cristão em sua inconfundível mescla com o judaísmo que o precedeu. Cristo, neste caso, um tipo de semideus – uma mistura de deus e homem, colocando o mundo histórico em contato com o mundo teológico, vontades divina e humana se tensionando, quase como na mitologia grega.

A Idade Moderna se encarregará de promover o antropocentrismo, reduzindo a divindade a uma opção de fé de foro íntimo, já que este novo “espaço” psicológico passou a existir, graças à plena constituição do indivíduo, agora devotado à razão e dotado de livre arbítrio, em geral avesso a crendices. Assim, Deus, embora não tenha sido morto, foi ferido de morte. Facultativo e não obrigatório (como na Idade Média), seus templos se amiudaram e seus seguidores passaram a ser em menor número e divididos entre distintas igrejas e diferentes cultos.

É atraente a opção de caracterizar o que se chama de Pós-modernidade como o tempo da definitiva morte de Deus, percebida e anunciada por Nietzsche (1844-1900), pois esta é a era do niilismo, tempo sem crenças e valores, em que o indivíduo pode (e defende-se que deve) deixar-se levar pela sua vontade, e somente por ela, que vinha sendo enfraquecida por uma “moral dos medrosos”, do tipo cristã.

A “trajetória histórica de deus”, então teria percorrido os seguintes trechos: panteísmo (tudo que é muito forte e incompreensível para o homem é tomado por divindade, sendo o homem, então, fraco de corpo – sem ferramentas diante da natureza, e de elaboração intelectual – sem o desenvolvimento, que estava por vir, do conhecimento); antropodeísmo (quando o homem, já com habilidades poéticas e literárias notáveis, concebe o Olimpo e estabelece relações com seus deuses para levar sua vida pessoal e, principalmente, coletiva); teocentrismo (quando um deus em tudo superior aos homens e muito diferente deste, na sua semelhança, torna-se não dono dos destinos, respeitado o livre-arbítrio, mas único depositário da vontade humana, caso o indivíduo queira evitar a danação eterna após a morte); antropocentrismo (quando deus perde o trono e a ciência, juntamente com determinado tipo de filosofia – antiteológica, lança o homem à própria sorte no universo); pós-humanismo (quando o homem, colocado no lugar de deus ao longo da modernidade, começa a desgarrar dos próprios valores humanos que se colocaram no lugar dos artigos de fé).

Parece que depois de destronado e morto, deus, ou algum deus, foi ressuscitado, no caldo pós-humanista de certos pentecostalismos. Mas esse deus revivido tende a não ser senhor, como todos os anteriores, mas servo obediente, se bem pago. É assim pelo menos em determinado tipo de ajuntamento de crentes, no qual um deus da prosperidade individual (comprada do sacerdote e paga em suaves ou pesadas prestações dizimais) se encarrega de alçar à riqueza aqueles que não a conseguiriam com seus talentos, habilidades e forças nas negociações quotidianas que o mercado impõe a todos. Esse deus alugado para ajudar a puxar a carroça de quinquilharias que dão conforto e distinção àqueles que dele se aproximam é, de longe, o pior que já apareceu na História, com sua contradição inexplicável: é forte o suficiente para dar o que lhe pede o fiel, mas fraco a ponto de obedecê-lo (mais do que atendê-lo) em suas preces por “boa vida” aqui e agora. É um deus do tipo gênio da lâmpada: posto para fora do recipiente para atender os desejos do dono e colocado de novo para dentro uma vez este saciado – um deus portátil. Ave Maria! Valei-me Baco! Melhor que Alah seja ó único deus ou que o Buda nos ensine a viver de outro modo.

(Se deus se transforma assim, no tempo, o único deus é o tempo... ou o vir-a-ser. Mas pode ser que a transformação relatada seja apenas uma ilusão. Que Deus a perdoe!)

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