Em alemão se diz, daqueles que mantêm entre si uma amizade epistolar, uma troca regular de ideias, sentimentos, impressões e opiniões, através de cartas, que são brieffreund. Do passado foram resgatados exemplares de trocas deste tipo que se revelaram valiosos. Por exemplo, aqueles da correspondência entre Tcheckov e entre Flaubert e diversos de seus respectivos contemporâneos, que permitem entender aspectos da singularidade e da genialidade desses gigantes da literatura universal.
Na minha crônica O plebeu partido ao meio: comunicação interpessoal eu tratei desse tipo de relacionamento à distância, apontando que a internet trouxe a ele mudanças profundas, tanto positivas como negativas. Eu tive alguns e algumas brieffreund na adolescência e juventude e de alguns deles/as ainda guardo cartas manuscritas. Adulto, fui alcançado pela novidade do e-mail e, como a imensa maioria das pessoas, passei a utilizá-lo em vez das cartas enviadas e recebidas pelo correio com um lapso de tempo que se tornou, face à nova tecnologia, insustentável.
É fácil perceber, vivenciando os dois tipos de experiência, que a troca de cartas é mais favorável à sustentação de uma amizade, pois ela implica sempre espera e perseverança refletidas, ao contrário da troca de e-mails: quem envia um se sente desrespeitado se não recebe resposta imediata (situação agravada com a substituição do e-mail pelo whatsapp, por exemplo) e a rapidez das trocas geralmente sufoca a intensidade carregada pelas mensagens. Parece que a mediação de elevada produtividade da máquina (o computador) aplaina o caminho percorrido pela dupla de missivistas, não restando nele as pedras que existem quando o mediador é o correio (com sua produtividade reduzida pela necessidade de a correspondência percorrer, fisicamente, vários trajetos, utilizando diferentes meios de transporte) e seu agente final, o carteiro, tantas vezes aguardado com ansiedade – “Quando chegará a resposta? E qual será?”.
Na minha experiência ficou claro que conseguir brieffreund no mundo real é mais fácil que no virtual. De fato, eu só tenho uma "amiga por e-mail". E me pergunto se em alemão pode-se utilizar o mesmo vocábulo para se referir tanto a amigos por carta como a amigos por e-mail; acho que não.
A minha única brieffreund é brasileira, de família alemã; foi ela quem me deu a conhecer, recentemente, esta saborosa palavra teutônica, de difícil pronúncia, para mim. Começamos a nos falar, se bem me lembro, em 2000 (há 24 anos!), logo depois de eu publicar um livro que fui divulgar nas então úteis mailing-list. Seguiu-se um longo telefonema, depois aconteceram dois encontros, um em Araraquara, na Unesp (quando lhe conheci os pais) e outro em Santo André, na recém-criada Universidade Federal do ABC. Encontramo-nos pelo Facebook e também pelo Whatsapp, por um tempo, mas ambos (ela bem antes) nos desencantamos com as redes sociais.
Minha brieffreund é, em muitos aspectos, o oposto de mim, apesar de nos igualar o elevado apreço pelo conhecimento (assim como a ojeriza pela vaidade e pela prepotência acadêmicas) e uma inevitável inquietação face à vida, ao mundo, às relações humanas. Dentre as diferenças entre nós (que mais nos aproximam que distanciam) está o fato de que ela viaja muito, enquanto eu me assemelho a uma árvore: para sair de onde estou (no interior paulista), é preciso que me cortem raízes, aparem os galhos, juntem tudo numa carreta, e me levem de um ponto ao outro – ainda assim, com a promessa de me trazer de volta.
Nas “cartas” que trocamos, eu viajo com minha brieffreund , que às vezes me envia fotos dos lugares em que está (geralmente na Europa), mas, principalmente textos breves relatando suas experiências e novas inquietações, emaranhadas com as antigas. É como se ela falasse de dentro de uma vida nômade e eu respondesse envolvido por uma vida sedentária.
Hoje (18/10/2024) recebi um e-mail dela, redigido em Tübingen, onde está, vinda da Sicília. Achei isso uma grande coincidência, pois ontem me lembrei dela num trecho da leitura de O falecido Mattia Pascal (do siciliano – coincidência dentro da coincidência – Luigi Pirandello), imaginando como ela às vezes se sente. O trecho é este:
“Divertia-me bastante, viajando para cá e para lá
(...)
... e comecei a pensar em que cidade me conviria fixar residência [acaba sendo Roma], visto que não podia continuar, por mais tempo, como pássaro sem ninho...
Esse sentimento penoso da precariedade ainda me dominava e não me deixava amar a cama em que ia dormir e os vários objetos que tinha ao meu redor.
Cada objeto, em nós, costuma transformar-se consoante as imagens que evoca e agrupa, por assim dizer, em torno de si. Certamente, de um objeto podemos gostar também em si mesmo, pela diversidade das sensações agradáveis que suscita em nós numa percepção harmoniosa; mas, com bem maior frequência, o prazer que um objeto nos proporciona não se encontra no objeto em si mesmo. A fantasia o embeleza, cingindo-o e quase que iluminando-o de imagens queridas. E, à nossa percepção, ele não mais se apresenta tal como é, mas como que animado pelas imagens que suscita em nós ou que os nossos hábitos lhe associam. No objeto, em suma, amamos o que nele pomos de nós mesmos, o acordo, a harmonia que estabelecemos entre ele e nós, a alma que ele adquire somente para nós e que é constituída das nossas lembranças.” (p. 127-128)
Esta crônica é parte da minha resposta ao e-mail recebido hoje da D.T., depois de um longo período sem contatos. Típico: respondo aos relatos de viagem dela com comentários de leituras minhas. É nisso que somos parecidos: estamos sempre viajando. E é nisso que somos diferentes: ela viaja pelo mundo; eu, pelas páginas. E é por causa dessa semelhança e dessa diferença que ela é minha brieffreund. E espero que assim nos mantenhamos por muito tempo.
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