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  • Foto do escritorValdemir Pires

Um lugar silencioso



A Quiet Place (Um Lugar Silencioso) — dirigido, roteirizado (juntamente com Scott Beck e Bryan Woods) por John Krasinski, que também atua no filme, contracenando com Emily Blunt — começa enfrentando uma dificuldade: a ausência de falas entre pessoas que estão juntas e precisam se comunicar. Durante uma hora e meia o silêncio é o principal personagem, sustentado pelo medo da família do meio-oeste americano (marido, mulher grávida, uma filha adolescente, dois meninos) diante da possibilidade de ataque fulminante de monstruosos seres que são atraídos pelo barulho. O suspense prende o expectador a maior parte do tempo, e durante a primeira meia hora a plateia se mantém cúmplice da família apavorada, evitando ruídos até dos sacos de pipoca.


Nada excepcional, “Um Lugar Silencioso” é um filme comercial típico: vale pelo entretenimento que proporciona. O silêncio não fala mais alto, como ocorreria se a opção fosse explorar esteticamente ou filosoficamente este elemento no roteiro; mas serve para induzir algumas especulações sobre tão ruidoso tempo, como este que vivemos.


Sadicamente pode passar pela cabeça de quem se sente perturbado (ou atacado) pelo som de carros com treme-terra circulando pelas vias comuns, ou tem vizinhos que gostam de impor aos demais suas preferências musicais, a conveniência da substituição do insuficiente aparato policial por um ser onipresente e fatal como forma de coibir os abusos e desrespeitos às leis que defendem o silêncio como bem coletivo.


Ao mesmo tempo, a necessidade de supressão total dos ruídos (um copo que cai e quebra, o zunido do motor elétrico de um brinquedo, o grito que acompanha a dor por pisar em um prego ou ver morrer um ente querido) pode ser percebida como perversamente desumana.


De silêncio e ruídos necessitamos todos. Da combinação de ambos é feita nossa existência; essa combinação marca nossa presença no mundo. Dificilmente poderemos seguir em frente sem os sons e barulhos interrompendo o silêncio: nossa fala é um meio de interação de que jamais poderemos abdicar. Apesar de que, como em cenas de “Um Lugar Secreto”, na relação entre o pai e a filha (cheia de culpa pela morte do irmão mais novo), tantas vezes as palavras que poderiam ser ditas (“Eu te amo”, por exemplo, ou “Não te amo mais”) não o são, lançando sombras sobre sentimentos que existem e não se expressam ou fazendo supor que algum sentimento existe, quando não é mais o caso.


Inimaginável a vida sem a música, esta arte que brinca com sucessões humanamente organizadas de som e silêncio, encontrando nisso sentidos e sentimentos dominados pelo indizível.


Indesejável, entretanto, que as máquinas de música (essas prisões artificiais da voz e da execução de instrumentos musicais), potentes como nunca em alcance sonoro, tenham que ser (o que nem sempre é possível), “caladas”, seus donos sendo silenciados, quando poderiam apenas, e voluntariamente, ser silenciosos, por consciência de que o tímpano alheio não pode ser estourado ou o silêncio (bem coletivo) não pode ser invadido impunemente.


Inconcebível um mundo, enfim, como o vivido pela família americana em “Um lugar silencioso”. Concebível apenas imaginariamente, por sua vez, as criaturas violentas que impõem o silêncio no filme de Krasinski. Mas concretamente concebidos, viabilizados por uma tecnologia específica e por uma visão de mundo particular, não obstante indesejáveis sob tantos pontos de vista, esses seres humanos que, hoje em dia, impõem, violenta e covardemente, o barulho excessivo, às vezes insuportável, aos demais ao seu redor. Sobre essa outra monstruosidade o cinema já “se pronunciou”, desvelando sua natureza?


Por último, teria sido proposital o final do filme? Nele a arte imita a vida? — mulheres, com os próprios destinos em suas mãos (preste-se atenção às cenas finais), reunindo forças entre si para romper o silêncio a elas imposto.


(Publicado no Adoro Cinema)

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