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Fahrenheit 451

  • Foto do escritor: Valdemir Pires
    Valdemir Pires
  • 3 de nov.
  • 4 min de leitura
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Leia na coluna Café com Pires, no Diário do Engenho


O título Fahrenheit 451, que Ray Bradbury deu ao seu livro mais famoso, de enigmático passa a esclarecedor quando se sabe que 451 graus Fahrenheit (ou 233 graus Celsius) é a temperatura a partir da qual o papel comum entra em combustão. A obra, das mais expressivas no campo da literatura distópica, de fato trata da queima de livros para evitar que a leitura enseje sentimentos, já que, na sociedade futura de que trata, sentir é proibido, sob a justificativa de que causa desordem, conflito e sofrimento.

 

Guy Montag, o protagonista do romance, é um agente do “sistema” encarregado de queimar livros onde quer que sejam encontrados. Mas... Há sempre uma brecha para o desvio quando o fator humano se faz presente. Em dado momento, conversando com Mildred, sua esposa estranhíssima, o carrasco das letras dirá:

 

“– Ontem à noite eu pensei em todo o querosene que usei nos últimos dez anos. E pensei nos livros. E pela primeira vez percebi que havia um homem por trás de cada um dos livros. Um homem teve de concebê-los. Um homem teve de gastar muito tempo para colocá-los no papel. E isso nunca havia me passado pela cabeça.”

 

Neste momento ele se dá conta da covardia de seu fazer quotidiano: em minutos, destrói o que pode ter levado uma vida inteira para ser construído – um livro. Essa tomada de consciência acrescenta-se a uma sensação que vinha desfrutando às escondidas, ao ler trechos de obras que andava livrando da fogueira e levando para sua casa, sob temor e censura da esposa absorvida pela lógica do “sistema”. Disso resulta um comportamento suspeito e arriscado, que o herói não mais abandona, mesmo alertado por Beatty, o Queimador-Chefe (contraditoriamente, o Chefe dos Bombeiros):

 

“– O crime não é ter livros, Montag, o crime é lê-los! Sim, é isso mesmo. Eu tenho livros, mas não os leio!”

 

Montag irá se juntar a uns poucos outros indivíduos revolucionários, cujo esforço se concentra em preservar conteúdos de livros na própria memória, evitando que se percam – como se cada pessoa fosse um livro, compondo juntos uma biblioteca oral, independente não da palavra escrita, condenada ao extermínio.

Mas o que, afinal, levou o queimador de livros a tal estado de consciência e a tal necessidade de agir? Tudo começou quando ele se deparou com uma menina leitora, Clarisse, que terá um fim trágico. Questionada por ele, a garota admite, resumindo o que acontece naquela sociedade estranha:

 

“– Não tenho amigos. Isso é o bastante para provar que sou anormal. Mas todos que conheço estão gritando ou dançando por aí como loucos ou batendo uns nos outros. Você já notou como as pessoas se machucam entre si hoje em dia”

 

E todos hipnotizados pelo rádio e pela televisão, com suas mensagens manipuladas pelo “sistema”.

 

“– [Livros] Clássicos reduzidos para se adaptarem a programas de rádio de quinze minutos, depois reduzidos novamente para uma coluna de livro de dois minutos de leitura e, por fim, encerrando-se num dicionário, num verbete de dez a doze linhas.” – dirá Beatty num sermão a Montag, acrescentando em seguida:

 

“A escolaridade é abreviada, a disciplina relaxada, as filosofias, as histórias e as línguas são abolidas, gramática e ortografia pouco a pouco negligenciadas, e, por fim, quase totalmente ignoradas. A vida é imediata, o emprego é o que conta, o prazer está por toda parte depois do trabalho. Por que aprender alguma coisa além de apertar botões, acionar interruptores, ajustar parafusos e porcas?”

 

Ler este livro neste momento histórico, de crise cultural em meio a um avanço tecnológico de profundidade e velocidade nunca antes experimentados, é uma experiência reveladora, às vezes aterradora. É, acima de tudo, uma oportunidade para se pensar na importância da escrita e da leitura como alicerces de um modo de ser, de viver, de interagir, que está diante de um terremoto que coloca em xeque não somente a escrita e a leitura, mas a condição humana possibilitada pelas letras.

 

Se o rádio e a televisão, nos anos 1950, levaram Bradbury a uma perspectiva distópica, imagine-se o que ele teria concebido nas primeiras décadas do século XXI, com o advento da internet e de seus aparatos! Talvez ele tivesse dado um passo na direção de um cenário pós-distópico (e não simplesmente pós-utópico, como conhecemos): um cenário em que, para dizer qualquer coisa, é necessária a comunicação não com palavras (já assassinadas), mas com outro artefato, livre de sentimentos, desejos, indecisões, imperfeições – qual? Afinal, atualmente não se faz necessário um aparato repressivo para impedir que se leia: esse desvio anticivilizatório, em que consiste o abandono da leitura (desencorajando a escritura), ocorre por si mesmo, como resistência individual e individualista ao “desprazer” do contato com as letras, em busca de outros prazeres que prescindem do esforço de abordagem do texto.

 

(Referência: BRADBURY, R. Fahrenheit 451. Trad. Cid Knipel. São Paulo: Globo, 2020, 215 p.)

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