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  • Foto do escritorValdemir Pires

Qual hora certa?



Era uma segunda-feira chuvarenta e eu tive que ir a um banco bronco destravar a senha do cartão de minha conta, que havia desfuncionalizado por motivos misteriosos. Eu caminhava na Praça José Bonifácio cabisbaixo, protegido por um guarda-chuva precário quando ouvi:


– Moço, moço, qual a hora certa?


Era uma velhinha embaixo da marquise do Bradesco, gritando e acenando, quase desesperadamente.


– Dez e qua... Quinze pras as onze – eu respondi, acenando lentamente, enquanto pensava: “Qual a hora certa? Por que não perguntou simplesmente ‘Que horas são’? Será que eu respondi certo?”


Minha dúvida quanto a ter ou não respondido corretamente à indagação da velha senhora não era de natureza quantitativa. Eu havia olhado para o relógio e visto o ponteiro de horas entre o número dez e o número onze (mais próximo deste) e o ponteiro de minutos sobre o número quarenta e seis. Informei dez e quarenta e cinco por aproximação, porque isso certamente bastava às necessidades de quem perguntara.


Minha dúvida tinha a ver com o aspecto qualitativo da expressão “certa”. Este adjetivo, aplicado ao substantivo hora, dá margem a ambiguidades. Por exemplo: em português dizer “hora certa” e dizer “certa hora” é dizer coisas diferentes. “Certa hora” quer dizer: num dado momento, num específico instante ou coisas parecidas (em nada relacionadas aos ponteiros ou dígitos do relógio), bem diferentes de “hora certa”: aquela configuração de ponteiros no relógio que indica precisamente o quanto o dia já escoou para dentro do sumidouro do tempo.


E minha dúvida ia além dessa preocupação gramatical, dessa tendência à imprecisão e ao colorido da língua portuguesa. Hora certa, pode, sim, estar relacionada à precisão cronológica. E aí remete Chronos, aquele que, na mitologia grega, instrui sobre a passagem irreversível do tempo. Mas hora certa pode também ser a hora exata a ser aproveitada para se fazer ou para que aconteça algo (a hora “H”) – esta remetendo, na mesma mitologia grega, a Kairós.


Qual dessas horas certas eu deveria ter informado àquela senhora branquinha, magrinha, baixinha, de cabelos gris, trajando vestido de fundo preto com estampas florais vermelhas, azuis, verdes, abóbora, calçando sandálias havaianas brancas em cima e azuis embaixo, segurando firme na mão esquerda umas notas de poucos reais enroladas?


Por Zeus!, talvez eu não devesse ter olhado para o relógio para responder, mas sim para as circunstâncias. Não seria a hora de eu perguntar o porquê daquele aparente desespero?


– Vovó, é cedo, ainda, do que você está precisando? (A hora certa de Chronos era 10h46min, mas a hora certa de Kairós era a de, talvez, oferecer carona no guarda-chuva para levá-la ao local onde deveria já ter chegado e não havia chegado por causa do “impedimento pluviométrico”).


O certo é que aquele instante (10h46min da segunda-feira, 30/01/2023) não era a hora certa para a pobre velhinhas estar no meio da chuva, se abrigando precariamente na marquise, desesperada para chegar a outro lugar.


– É a hora certa para você se livrar desse desespero, vovozinha. Venha cá, embaixo do meu guarda-chuva! Como vai a senhora? Aonde tem que chegar? O que precisa fazer agora?


O certo seria eu tê-la ajudado e não apenas respondido burocraticamente à pergunta que me fez com palavras, fazendo outra com os gestos e o olhar. O errado foi eu estar sob o jugo de Crhonos (“Corre, rapaz, o tempo está passando!”), impedido de dar atenção a Kairós, que me dizia: “Nunca desperdice o tempo de praticar um gesto de simpatia e gentileza!”


E agora eu estou aqui, escrevendo sobre meu erro. Quem sabe isso não ajude outras pessoas a evitar cometê-lo, não ajude a pelo menos fazerem um esforço, ao longo do dia, para desviar um pouco o olhar de Chronos e dirigi-lo a Kairós.

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