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  • Foto do escritorValdemir Pires

Oração


Imagem: Jon Tyson, Unsplash


O que é oração? Para que orar? Para quem orar? Com quem orar? Como orar? Orar não é prática que a Razão deveria ter banido há muito tempo, e definitivamente desde a constatação (embora jamais unânime, talvez nunca majoritariamente aceita) do óbito de Deus? Estas são perguntas que, à primeira vista, interessam apenas aos homens de fé. Mas, pensando bem, deveriam inquietar a qualquer um, a todos com alguma sensibilidade para além do quotidiano estritamente biológico.

 

Orar é uma prática antes da inteligência que da fé. O ato de se evocar ou invocar, suplicante ou agradecido, um ser, ente ou força situado além da materialidade evidente, implica um grau de elaboração mental a que se dá o nome de criatividade: inventar, respeitando ou não as bases lógicas do pensamento, denota um tipo específico de inteligência (criativa, onírica, metafísica), em princípio ausente na biologia infra-humana.

 

Mas o que leva a inteligência, mesmo nos momentos históricos de ápice da Razão, de desmistificação científica avassaladora, a não se desprender de hábitos adquiridos e sedimentados em períodos ingênuos, como a era mística pré-histórica e antiga e a era teocêntrica medieval? Ignorância, credulidade, misticismo, desespero tem sido algumas das respostas. Mas será que orar é apenas este resíduo de lixo mental da fase pré-científica da humanidade?

 

A resposta a esta pergunta depende, claro, do que se entenda por oração. Se orar é um modo de submissão acrítica a deuses ou a um Deus, seguindo os dogmas elaborados e impostos por uma religião institucionalizada, com seus sacerdotes dotados de poder para vigiar e punir (a Inquisição sendo o exemplo histórico pronto e acabado), então esta prática se transforma num procedimento que pode melhor ser explicado pela Sociologia ou pela Ciência Política que pela Teologia. É fácil, por exemplo, perceber que há no Pai Nosso dos cristãos uma concepção de Deus muito específica: Ele é Alguém (Deus antromoporfizado) a quem o crente se submete e a quem suplica.

Primeiro, Deus é identificado, para que aquele que ora saiba exatamente a quem se dirige (a oração tem um destinatário): Pai nosso – de todos, sem exceção, embora milhões e milhões de homens e mulheres se sintam pertencentes a outras famílias divinas ou a nenhuma.

 

Em seguida, Deus é localizado: Que estais no céu – ou, na verdade, em todos os lugares, seu “endereço” sendo o universo, que os olhos vislumbram à medida que a Terra gira.

 

Deus, então, é entronizado e coroado: Santificado seja o Vosso Nome, venha a nós o Vosso Reino, seja feita a Vossa Vontade, assim na Terra como no Céu. Seria mais simples dizer “seja feita a Vossa Vontade em todo o universo”, mas Terra e Céu ainda não eram cientificamente revelados  tal como são, hoje, quando da escrita da prece.

 

Ao Rei, ato contínuo, é dirigida uma saraivada de pedidos: O pão nosso de cada dia nos dai hoje;  perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido; não nos deixeis cair em tentação e livrai-nos do mal.

 

Orar, como no Pai Nosso, é, pois, submissão e súplica. Não deixa de ser um lenitivo, diante das dores, dificuldades, agruras, decepções, desencantos, frustações da vida, que não costumam ser poucas para a imensa maioria de seres humanos. E, como tal, tem seu valor espiritual; assim como seu risco, digamos: sociopolítico.

 

Mas orar pode ser outra coisa. Pode ser uma atitude diante do Mistério. Que começa com a aceitação de que não há Pai, tudo e todos sendo manifestações de algo que a razão, a inteligência, a mente humana não são capazes de compreender e explicar, porque o cérebro não é dotado do que seria necessário para processar os “dados” envolvidos.  Passa por entender que entre Rei e súditos há uma relação de poder que, convenha-se!, é demasiado humana para que “interesse” a Deus.

 

Se não há Pai nem há Rei, a quem dirigir a oração? Eis um grande nó! Uma oração que foge completamente à lógica do Pai Nosso (lógica transacional que se estende à maioria senão a todas as preces convencionais) não deve recorrer ao vocabulário ou, caso recorra a palavras, deve escolher entre as menos limitantes, pois do contrário o Mistério sequer é tangenciado. Assim, orar pode ser contemplar, e de tal maneira que o que se contempla seja “respirado”, introjetado, assimilado pela alma, levado para dentro do ser. Orar assim é praticar um abandono de si frente ao universo próximo (como se aquilo que se contempla fosse a janela para todo o universo, infinito e eterno), para em seguida retornar a si com a compreensão da própria pequenez (um corpo que é menos que um grão de areia) e da própria grandeza (um grão de areia capaz de saber que há um Mistério e capaz, também, de manter contato com ele). Orar, pois, como um perder-se para reencontrar-se, bastando o trajeto de ida e volta, sem preocupação em saber o que foi que aconteceu, o que mudou no durante – embora sabendo que algo acontece e algo muda, de fato, a cada viagem, sempre desejada, a ponto de se lutar para que haja tempo para ela, apesar da correria do dia a dia.

 

Tal tipo de oração é íntima e absolutamente subjetiva, não se prestando a nenhuma forma de prática religiosa convencional. Certamente não é nenhuma invenção, tendo sido acessada por muitos ao longo da História – talvez seja uma descoberta, sempre à espera de potenciais descobridores.

 

Oração assim cabe perfeitamente quando o que se quer é sentir e expressar gratidão (para o universo ou para Deus, não havendo diferença entre um e outro para Espinoza, por exemplo). Mas e quando o que se precisa é suplicar, pedir, clamar por algo? Enquanto no Pai Nosso está explícita uma relação de troca – o Pai e Rei é obedecido e louvado e dele se espera o atendimento dos pedidos – na oração contemplativa (na falta de melhor nome) o que existe é uma imersão no Todo, que nada reivindica e nada promete. Portanto, quem ora contemplativamente deve aceitar o que lhe acontece, lidando por si só com causas e consequências do seu existir, eximindo o Mistério, o Universo, Deus, de qualquer tipo de intervenção – ora não para se submeter nem para suplicar, mas para participar do Mistério e abastecer-se de forças para lidar sem mistificação com o que não é mistério: o quotidiano. Não obstante a quotidianidade possua sua própria dose de mistério...

 

(Este texto é eternamente provisório. Enquanto seu autor existir, continuará refletindo sobre o assunto nele abordado (por necessidade pessoal inexplicável), alterando-o a cada nova partícula de compreensão. Assim sendo, escrever e reescrever este texto se constitui numa forma de oração de quem o escreveu e reescreve de tempos em tempos. Amém!)

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