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O plebeu partido ao meio: fotografia

Foto do escritor: Valdemir PiresValdemir Pires


Há um livro de Italo Calvino chamado O visconde partido ao meio, que narra a aventura de um homem que uma explosão transformou em dois, um bondoso e outro maldoso. Eles retornam à terra de origem e os dois se relacionam com uma mesma moça, nisso resultando grandes confusões. Eu, embora uno fisicamente, também sou dividido em dois, quase ao meio. Não por uma explosão, mas pelo tempo. Sou um homem com um pé no primeiro milênio da era cristã, e outro no segundo. Sou também uma pessoa que viveu trinta e sete anos no século XX e outros vinte e três no século XXI. E como do final do século passado para o atual os avanços tecnológicos foram muitos e profundos, acelerados, é como se eu tivesse mudado de mundo há uns trinta anos. Muitas são as formas de perceber esta mudança. Penso agora em uma delas: o modo como produzimos e armazenamos imagens fixas de pessoas, coisas, eventos, utilizando a fotografia.


Percebi – uma vez mais – a mudança profunda que tenho vivenciado quando, por vários motivos, comecei a organizar minha fotobiografia: uma espécie de história de vida pessoal cujo desenrolar pode ser percebido pela sequência cronológica de imagens fotográficas. Dei-me conta, por um lado, de que meus pais e avós não organizaram álbuns de família, por um motivo bem simples: no tempo deles, fotografia era muito cara e eles eram pobres; e, por outro lado, eu o fiz apenas parcialmente até uma certa fase da vida, pelo mesmo motivo de natureza financeira dos antepassados (afinal, não sou um nobre europeu, mas um plebeu latino-americano). Mas, a partir de um dado momento (meados dos anos 2000), acumulei muitas imagens, não mais em papel fotográfico, mas em arquivos de computador – praticamente sem custos unitários.


No processo de organização da mencionada fotobiografia (em andamento) descobri que a primeira foto minha é de 1974, eu com dez-onze anos: uma 3x4 da carteirinha de estudante, tirada porque exigida para a matrícula na escola. Lembro-me que foi um drama familiar conseguir o dinheiro para pagar o serviço do Mário, o fotógrafo japonês da City-Fotos, na Praça Barão de Araras; e não esqueço que foi um evento ir até o “estúdio” para o clique, mal-feito, inclusive. Nada de foto de mãe grávida, de bebê de colo, de batismo, de bebê dando os primeiros passos, de criança brincando durante viagens, de aluninho de pré-escola etc. (como as tenho de meu filho).


Minha segunda foto é de 1976, espécie de prêmio, junto com uma medalha, por ter vencido (numa das categorias) um concurso de desenho infantil realizado pelo Lyons Club de Araras. A terceira é de 1978, tirada pelo então presidente da Guarda Mirim de Araras, Custódio Gândara, sobre a bicicleta Monark vermelha (Monareta), meu instrumento de trabalho (àquela altura danificada por um acidente com um Fusca de empresa limpadora de Campinas), defronte ao Mercado Municipal, estando junto outro guardinha, o amiguinho João Aparecido de Lima. São fotos de um menino que já andava fora de casa. Por fim, apareço em três fotos tiradas por profissional contratado pela comissão de formatura da 8ª. série (do antigo primeiro grau) na Igreja do Bom Jesus, no bairro Belvedere, em Araras. Não há outras, nem de aniversários, de primeira comunhão, de crisma, da escola, do coral, do grupo de teatro do Clóvis K. Marcolongo – nada. A não ser uma de 1977, em preto e branco, tirada pelo amiguinho Edson Grego, na beira da ferrovia desativada próxima às nossas casas na Vila Dona Rosa Zurita. Nesta foto apareço magro, magro, de calção, camiseta e chinelos, com uma Kodak Instamatic 177X pendendo de uma das mãos. Eu a tinha comprado a prestações (com dificuldades para pagar) e aprendia que caro, mesmo (para mim), eram os filmes e, mais ainda, as revelações... Nem por isso deixei de fazer, em 1978, um curso de fotógrafo por correspondência; e de comprar um kit de revelação que, por inabilidade, destrocei na tentativa de utilizar.

 

Assim terminou a primeira fração da metade do plebeu partido ao meio que sou: aquela metade da metade de um tempo praticamente sem registro de imagens até os anos 1980, apesar do gosto por fotografia, tentada como hobby que não cabia no meu orçamento, começando com uma Tekinha, passando por uma Kodak Instamatic 11 (sem dispositivo para flash) e chegando, no máximo, a uma Kodak Instamatic 177X, que aceitava flash, inclusive uns descartáveis, em formato de cubo, fornecendo quatro iluminações.

           

A segunda e última fração da metade da parte do plebeu partido ao meio que sou tem uns poucos registros fotográficos significativos, em suporte físico. Cliques comigo no trabalho, em atividades com grupos de jovens, na militância política, na universidade (primeiro como estudante, depois como professor), em viagens etc. A esta altura, eu tive várias máquinas fotográficas, muito mais sofisticadas que as primeiras: com flash embutido, com zoom, com acionamento por controle remoto etc., duas delas compradas a preços vantajosos em viagens internacionais (uma em Seul e outra em Madri).


A segunda metade do plebeu que sou, fotografado ou fotografando, faz uso de câmeras digitais, inicialmente uma Nikon D3100 comprada pelo filho Bruno na França e, em seguida, sucessivas câmeras, cada vez melhores, embutidas nos telefones celulares. É neste momento da minha vida que acontece, como no mundo, uma verdadeira inflação de imagens: baratas, banais, tomadas quase a esmo, sem muito cuidado.

Estou, a partir de então, no mundo novo, que já não é mais da fotografia como registro raro nem como arte, feito com técnica exigente e trabalhosa. Mundo em que a profissão de fotógrafo quase desapareceu, profissão essa que, nos primórdios, era admirada e exigia uma formação específica, resultante em boa remuneração.


Hoje existem de mim tantas tomadas, por aí, inclusive espalhadas pela rede mundial de computadores, que se torna difícil não mais a obtenção de imagens, mas a seleção dentre as inúmeras disponíveis, seja nos arquivos de meu notebook, seja na nuvem.


Eis que o plebeu se partiu ao meio, entre outros motivos, por força da tecnologia fotográfica que cindiu o mundo em dois, historicamente: aquele (antigo) da era das fotos em suporte físico, e este (atual) da era do suporte virtual; aquele (antigo) das máquinas fotográficas relativamente complicadas, e este (atual) das lentes embutidas em aparelhos telefônicos de fácil manuseio; aquele (antigo) do “processo fotográfico” (colher o instante na película química, revelá-la – obter os “negativos – , imprimi-la em papel, armazená-la ou distribui-la), e este (atual) que abole o processo e transforma o congelamento do instante em procedimento verdadeiramente instantâneo (simplesmente capturar a imagem, que já fica arquivada na memória virtual e pode ser imediatamente enviada a terceiros através dos canais disponíveis na rede mundial de computadores). A diferença entre uma era (antiga, analógica) e outra (atual, digital) é enorme, como se pode concluir, e tem a ver com o tempo, enquanto aceleração da velocidade, e com a economia (relacionada à redução de custos).


O plebeu, hoje, continua pobre, mas agora densamente “documentado” em sua condição, tantas vezes disfarçada por artifícios de “montagem fotográfica”, antigamente prova de habilidade e hoje “brincadeira de criança”, graças às ferramentas de edição.


E pensar que num passado mais remoto do que o tratado aqui, antes da invenção da fotografia, um retrato era coisa de pintor, assim como a “foto” de, por exemplo, uma batalha ou uma paisagem – não só cara, como fatalmente rara. Enquanto hoje em dia, este plebeu partido ao meio, que aqui escreve, pode se dar ao luxo de organizar uma fotobiografia e, ainda por cima, torná-la acessível a qualquer um, mantida no seu site pessoal. É coisa de louco, na cabeça de um sexagenário de mente e coração distribuídos entre o século XX e o século XXI. Como mudou o espetáculo do mundo! Mudou espetacularmente.

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