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  • Foto do escritorValdemir Pires

O tempo em cápsulas



Lembro como se tivesse sido hoje. Eu era menor aprendiz no Banco do Brasil na cidade de Araras. Trabalhava durante o dia e estudava à noite, cursando o que então se chamava colegial. Havia escolhido o técnico: em Açúcar e Álcool, implantado na cidade porque ali havia canaviais e usinas para absorver (e moer) os egressos. Eu vivia somente para essas duas atividades, porque no final de semana precisava dar conta das tarefas escolares negligenciadas nos dias úteis devido às obrigações profissionais. Por isso, vivia cansado e contraía uma gripe por mês, no mínimo.


Certa manhã, no banco, fui chamado a auxiliar um correntista na frente do caixa (o guichê atendido pelo circunspecto Trindade). Enquanto fazia o que me foi pedido, tossi várias vezes. O cliente, então, depois de me fazer um elogio pelo serviço, disse que eu precisava me cuidar contra aquela gripe. Ao que eu respondi que estava tomando suco de laranja em todas as refeições.


Proprietário de farmácia (São Luiz, se bem me lembro), o simpático senhor, alto e magro, de fisionomia séria, portador de um defeito físico que o fazia mancar – mas mesmo isso fazia com uma dignidade e elegância notáveis – me explicou que a quantidade de vitamina C de numerosas laranjas era ainda pouco para repor deficiências acumuladas e que, portanto, eu precisava tomar algum medicamento apropriado para me livrar da gripe atual e evitar as futuras. E prosseguiu explicando o porquê, como a química permite a concentração de agentes nos medicamentos etc. E dois dias depois, voltando ao banco para fazer um depósito, foi me chamar ali na lateral do balcão de caixas, com um aceno e um sorriso. Prontamente fui até ele, para ver do que precisava. Não precisava de nada, apenas queria me entregar uma caixa de vitamina C. E ainda disse (coro em escrever isso aqui): “Você tem uma carinha de muito inteligente. Nunca desperdice.” (Mal sabia ele que aquela observação bondosa estava sendo um curativo para uma ferida provocada horas antes, por uma funcionária do banco que, diante de um chiste meu, para fazer os colegas rirem, como era do meu feitio, havia dito, debochada e depreciativamente: “Espirituoooosoooo, não?”.)


A memória é uma coleção de cápsulas do tempo: um ajuntamento de episódios que não são esquecidos e permanecem ativos na definição daquilo que cada um pode ser. A memória afetiva reúne as cápsulas de remédio e também as de veneno, o equilíbrio emocional dependendo do balanceamento entre umas e outras. Quem elogia por princípio contribui para um mundo melhor, como o farmacêutico lá de Araras; quem critica, principalmente sem motivo (como aquela bancária que o fez somente porque, como costumava declarar, detestava pobres e não perdia a oportunidade de humilhar), puxa o mundo para seu lado pior.


Mas não é dessas cápsulas que eu quero tratar, aqui. Penso nas cápsulas de tempo gasto com experiências e reflexões que são os livros, vitaminas para a inteligência e a sensibilidade, que a antiga colega de banco desprezava (precursora de um determinado tipo de comportamento), em favor dos suplementos alimentares e academias de ginástica, para manter o corpo sarado, como principal objetivo da vida.


Sim, os livros são cápsulas de tempo vivido com experiências e reflexões, transformadas em textos, viabilizando o aproveitamento por quem não viveu ou refletiu o que neles está escrito. Assim como aquela de vitamina C, contra afecções pulmonares, essas cápsulas de papel funcionam como concentração de conhecimentos e percepções da vida e dos seres, em um nível que não é viável conseguir simplesmente vivendo. Assim: uma laranja tem muita casca e bagaço, além do suco; e no suco a vitamina C não se apresenta em grande monta – mas chupar uma laranja ou tomar um suco dela é gostoso, principalmente se gelado, no calor, o que não acontece quando se ingere uma cápsula ou comprimido de vitamina C. O que o concentrado ganha como defesa da vida, perde como experiência de vida. O mesmo acontece com o livro: a cápsula que ele é, vem da vida, mas não corresponde a ela, a não ser para quem escreve. Quem lê, “ingere a cápsula” com seu conteúdo concentrado: absorve o benefício do conhecimento ou do sentimento ali colocado com engenhosidade por quem o viveu ou foi capaz de imaginar como se o tivesse vivido; mas não capta a experiência no seu andamento, vívida enquanto acontece. Fica, porém, mais preparado para o que a vida lhe trará depois da leitura, assim como quem se medica com vitamina C fica fortalecido diante de uma gripe que estará por vir.


Não se perca de vista, todavia, que ao contrário de ingerir cápsulas medicamentosas, alimentar a alma com as cápsulas de raciocínios, memórias e imaginações alheias, que são os livros, pode se tornar um prazer específico, uma prática solitária que abre para mundos populosos e companhias insubstituíveis: prática que quem descobre jamais abandona, para total espanto daquela fatia da humanidade – a que não lê senão por obrigação – jamais compreenderá.


Ainda assim, eu quero aqui agir como o zeloso proprietário daquela farmácia do interior paulista dos anos 1970 aqui lembrado com carinho: recomendo cápsulas (preventivas e curativas) contra as numerosas doenças do espírito a que todos estão sujeitos, a começar pela ignorância e pela insensibilidade, que podem desandar em estupidez e truculência. Além da recomendação, acrescento o elogio daquele ser humano atento ao outro: “Vocês têm umas carinhas de muito inteligentes. Nunca desperdicem.” Mais ainda: trago, como autor, alguns presentes, escritos e disponíveis (nas prateleiras desta “farmácia” escondidinha numa esquina do mundo virtual: https://www.valdemirpires.com/ ). Aí está o tempo em cápsulas, o meu tempo em cápsulas: a concentração de horas da minha vida para entender, compreender e explicar ou debater aspectos selecionados da vida, do mundo, das relações, do existir por aqui, junto com os demais. Podem não ser cápsulas de elevada eficácia, como a de outros tantos fabricantes por aí afora, mas pelo menos um pouco funcionam, com certeza. Se não agradarem, procurem outras: mas não deixem de ler.

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