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  • Foto do escritorValdemir Pires

O amanhecer da esperança



Viver é lidar com necessidades, demandas, solicitações, pedidos, apelos, obrigações, do amanhecer ao anoitecer, desde que se nasce até morrer. O corpo e a mente se ocupam permanentemente com a busca de soluções, respostas, viabilidades, articulações, desde as mais simples – comer para satisfazer a fome, beber para matar a sede, aliviar as vísceras etc.  – até as mais complexas, como conseguir e manter um emprego para obter renda, ter alguém com quem dividir a vida (insuportável na solidão), sobreviver às relações de poder etc.


Nessa lida, o horizonte temporal se estica cada vez mais rumo ao futuro. Necessidades, desejos, demandas, obrigações se repetem todos os dias e novas vão surgindo, ao sabor das mudanças que vão acontecendo no mundo. A preocupação com a sobrevivência, e também com os confortos que se tornam habituais, se espraia para a frente na linha do tempo. De tal modo que, hoje em dia, o questionamento a respeito dos limites do meio ambiente para suportar o consumo em níveis explosivos se coloca insistentemente para todos, como se, a cada amanhecer fosse necessário perguntar: quantos dias mais tem o mundo pela frente? Como se o planeta tivesse sido diagnosticado de uma doença irreversível, diante da qual restam a resignação e uma contagem regressiva. A consciência do fim iminente se transforma em preocupação subliminar, que mina o terreno da alegria, do contentamento, da satisfação, do prazer, como uma dor incessante, carecendo de doses crescentes de analgésicos. E, claro, estes existem, plasmados em palavras, por exemplo, como estas:

 

"O Amanhecer da Esperança

 

O mundo, outrora exuberante e cheio de vida, agora enfrenta uma crise ambiental sem precedentes. As árvores sussurram suas preocupações ao vento, os rios choram lágrimas de poluição e os pássaros voam com pesares em seus corações. Estamos diante do abismo, com o relógio do apocalipse marcando os segundos finais.

Mas, mesmo nesse crepúsculo sombrio, há uma centelha de esperança. Uma chama que se recusa a se extinguir. É o amor e a bondade que habitam os corações daqueles que ainda olham para o céu com admiração, que plantam sementes de compaixão e que estendem a mão para os necessitados.

Nossos dias podem estar contados, mas o que fazemos com o tempo que nos resta é o que realmente importa. Não é o fim do mundo, mas o início de uma nova perspectiva. Cada nascer do sol é um presente, cada sorriso compartilhado é uma vitória contra a escuridão.

A crise ambiental nos lembra de nossa fragilidade, mas também de nossa força coletiva. Podemos escolher entre o desespero ou a ação. Entre a indiferença ou a compaixão. Entre a destruição ou a regeneração.

Então, vamos plantar árvores, limpar praias, abraçar nossos entes queridos e espalhar gentileza como sementes ao vento. Vamos amar a Terra como se fosse nossa última chance, porque talvez seja. Cada gesto de bondade é um raio de sol que perfura as nuvens escuras.

E quando o último dia chegar, que possamos olhar para trás com gratidão. Não pelo fim, mas pela jornada. Pelas estrelas que admiramos, pelas risadas que compartilhamos e pelas mãos que seguramos.

O mundo pode estar cambaleando à beira do precipício, mas nós, com nossos corações cheios de amor e bondade, podemos ser a mão que o puxa de volta. O fim do mundo? Não. É o começo de uma história de redenção, escrita com tintas de esperança e pinceladas de compaixão.

Que cada dia seja um ato de resistência, um hino à vida e um lembrete de que, mesmo no crepúsculo, podemos encontrar a luz. 🌎❤️🌿”

 

Este “esforço poético” alentador foi tecido na tela de um computador em menos de um minuto, pelo prodigioso Copilot da Microsoft, mediante a seguinte solicitação: “Escreva uma crônica em tom positivo sobre a crise ambiental, deixando claro que estamos diante do fim do mundo, mas que é preciso aproveitar o tempo que nos resta, com amor e bondade.”


Trata-se, como se percebe logo à primeira vista, de uma exortação típica das ondas de autoajuda que costumam emergir das angústias de tempos como o atual, marcados por mudanças profundas e correspondentes inquietações existenciais. A onda de autoajuda atual, especificamente, é um substituto próximo do salvacionismo religioso, cuja diferença fundamental é transformar o futuro de terreno em celestial. O indivíduo tem que escolher entre fé cega e resignação “consciente”, nenhuma delas o deixando verdadeiramente em paz, consigo e com o mundo. Na primeira opção (salvacionismo), remete-se tudo para o futuro, implicando isto um presente de privações (o preço de não cair em pecado); na segunda, o que conta é viver o presente, colocando em dúvida se haverá futuro. E parece impossível escapar dessas vielas, que se desenham como únicos caminhos.


É provável que se ao Copilot for solicitado um texto em tom positivo sobre a crise ambiental, inserindo a fé em Deus como lenitivo às angústias dela decorrentes, o “poeta digital” ofereça um material tão comovedor como aquele que se leu acima, aqui. Isso porque esta máquina de pensar artificialmente se nutre do que encontra na atual enciclopédia do mundo armazenada nas nuvens de dados que hoje pairam no céu invisível de bits e bytes. Como se a “consciência coletiva”, ali disponível virtualmente, pudesse ser acionada sempre que necessária, dispensando-se os individuais filósofos, teólogos, cientistas, artistas e até mesmo os onipresentes influenciadores digitais (quem sabe?). Da “nuvem” surgem respostas mais completas e neutras, polidas (a máquina é melhor “treinada” para evitar cargas de mau humor e preconceitos) que aquelas oferecidas pelas nossa atribuladas almas, pois a máquina é bem “treinada” para evitar cargas de mau humor e preconceitos.


É como se o manejo das palavras, último e profundo elemento caracterizador do humano, deixasse de ser privilégio do homem, biologicamente considerado, para se transformar, como ponto de chegada, em seu matemático construto coletivo: esta mente artificial, capaz (há muito) de memória e (agora) de um substituto próximo do raciocínio, sem possuir um só neurônio.


Diante do texto poético alentador do Copilot para encarar o possível fim da humanidade engendrada pela destruição ambiental em curso, aqui apresentado (e que em muito se assemelha a tantos textos por aí, em páginas e telas), o que pensar a respeito das possibilidades de cada um de nós, menos ou mais talentoso, no tocante a exprimir, em palavras, os medos, as angústias, as hipotéticas soluções, as urgentes esperanças que roem nossas almas?


Existe, ainda, a possibilidade de alguém, um ou alguns de nós, fugir aos lugares comuns e visões de mundo estereotipadas, sedimentadas no novo “consciente coletivo”, digital? Alguém capaz de continuar expressar, literariamente, o fato de que seguimos sendo um enigma, diante do mundo também enigmático? Alguém que, por esta via, contribua para que nosso ponto de chegada em comum não seja este imenso, intransponível e, sobretudo, indesejável, mar da alta performance e de contentamento artificial (irmão gêmeo da resignação) que nos transforma em menos que máquinas?


É uma esperança desta natureza que urge encontrarmos, pois se ela não puder penetrar nossas mentes e corações, e, a partir daí, se espalhar mundo afora, o melhor a desejar é, de fato, que a crise ambiental nos torne, enquanto espécie, mais um dos tantos esquecimentos do universo, em sua infinita permanência de transformações alheias ao amor, à bondade, à beleza, à ternura.  Haverá um amanhecer que a carregue? Haverá um entardecer que a sustente? Haverá um anoitecer que, transitório, não a elimine para sempre?

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