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  • Foto do escritorValdemir Pires

Nunca deixe de lembrar



Sobre Nunca deixe de lembrar (2018), direção e roteiro de Florian Henckel von Donnersmarck, com Tom Schilling (Kurt Barnert), Saskia Rosendahl (Elisabeth), Paula Beer (Ellie) e Sebastian Koch (Professor Carl Seeband).

 

Longa metragem com a delicada fotografia de Caleb Deschanel (indicada para o Oscar de 2019), Nunca deixe de lembrar conta uma história que prende o expectador com sua trama (em que se misturam o momento histórico da separação da Alemanha em duas e dois comoventes dramas familiares) e o leva a reflexões excepcionais sobre o fazer artístico.


Kurt Barnert, quando criança, tem especial apego à sua linda tia Elisabeth, de quem herda a propensão ao devaneio artístico, e a quem perde, executada pelos nazistas, exatamente por causa desses devaneios, associados à loucura. Jovem, ele consegue ingressar em uma escola de artes, como estudante de pintura, onde conhece Ellie, um se apaixonando pelo outro. O pai de Ellie é o Professor Carl Seeband, um médico arrivista que serviu tanto aos nazistas (condenando a tia de Kurt à câmara de gás, fato por ele desconhecido), quanto, depois da II Guerra, aos socialistas do lado oriental da Alemanha.


Apesar da oposição do pai de Ellie, ela se casa com Kurt, mas o casal tem dificuldades para fugir ao obsessivo e maléfico controle dele. A luta por autonomia do jovem casal é o acelerador da trama, que se desenrola entre as duas Alemanhas, Dusseldorf, como polo de vanguardas culturais do pós-guerra, sendo o centro de gravidade da ascensão de Kurt, iniciada antes, na Alemanha Oriental, mas com o incômodo da submissão da arte aos princípios do realismo socialista.


O notório talento de Kurt para a pintura, revelado desde criança (quanto desenhava a lápis nus inspirados na tia), aprimorado sob orientação especializada e consagrado ao ser escolhido como autor de importante mural em louvor ao povo trabalhador, é abalado quando, depois de abandonar esta obra, foge para a Alemanha Ocidental e é aceito, sem pompas nem reconhecimentos, como mero estudante, numa escola de vanguarda em que não mais se acredita na pintura. É ali, em Dusseldorf, que se desenrola todo o processo de metamorfose de Kurt.


Levando uma vida dupla, de faxineiro num hospital (graças à intervenção do sogro) e de artista/estudante inquieto, sempre acompanhado de Ellie (com dificuldades para engravidar, devido aos danos de um aborto provocado pelo pai, no início do relacionamento), Kurt enfrenta a árdua condição do artista: trazer para dentro de si as dores do mundo - suas e dos outros - e de um tempo histórico, para, implodindo-se (sem enlouquecer, ou enlouquecendo-se só o necessário à tarefa), proporcionar aos outros a possibilidade de entrever dimensões da vida que só a arte pode revelar.


Nunca deixe de lembrar é uma oportunidade oferecida pelo cinema para se pensar nas fronteiras nebulosas que demarcam a vida, o pensamento, a sensibilidade, os relacionamentos. Fronteira geopolítica, como pano de fundo histórico da consagração de um artista: as duas Alemanhas e o famoso muro delimitando mundos. Fronteira ideológica: o realismo socialista (igualitarismo) em confronto com o “eu, eu, eu” (individualismo) na alma de um pintor em construção. Fronteiras entre escolas artísticas: vanguardas em confronto e entre a arte aceita e a repudiada (“degenerada”). Fronteira entre a vida vivida pelo homem comum, com seus encantos e desencantos e seus limites e possibilidades, e a vida daquele que virá a ser um indivíduo extraordinário, digno de ser chamado de artista. Fronteira entre o amor à arte e o amor ao outro e a si mesmo, nem sempre compatíveis. Fronteira entre a arte como prática existencial (que alimenta a alma) e a arte como atividade profissional (que sustenta o estômago). Fronteiras entre amores consentidos e amores proibidos. Fronteiras, sempre fronteiras, cuja ultrapassagem nunca se faz sem pagar um preço. Fronteiras, além das quais o que se vislumbra é o desconhecido, cuja busca, em si, é recompensa aos que têm coragem – coragem de viver além do que costuma ser consentido ou mesquinhamente concebido. Coragem: a espada com que se rasga o denso véu que esconde o eu de mim mesmo (a respeito, atenção à cena em que o mestre da escola de Dusseldorforf - o homem que nunca tira o chapéu – visita o ateliê de Kurt e deplora suas obras).


P.S.: Ouvi dizer que Kurt foi inspirado na vida de Gerhard Richter.








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