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  • Foto do escritorValdemir Pires

Natal




Eu não gosto do dia de Natal. Achava que era porque esta data me traz lembranças tristes, da infância sem festas, ceias e presentes; e também por causa de um acontecimento absurdamente deprimente, desumano, que me afetou no Natal do ano em que eu completei dezenove anos, na pequena e mesquinha cidade onde nasci num mês de outubro. Mas mesmo após este sentimento negativo ter sido superado pelo tempo, que traz a compreensão e a aceitação de que a vida de cada um, isoladamente, é uma historinha banal, com seus bons e maus pedaços, esta festa continua me incomodando. Suspeito que seja por um motivo que só agora, já velho, eu posso identificar; e que é mais abrangente e profundo que as agruras que desabam sobre determinada pessoa, em determinados momentos de sua vida, deixando marcas duradouras.

 

 

 

O Natal é, ao mesmo tempo, a festa comemorativa mais importante para os cristãos (maioria no Brasil) e uma data de valor comercial (comandada por Papai Noel com suas renas fora de lugar), especialmente num país onde, no mês de dezembro, os pobres têm a oportunidade, única no ano, de consumir um pouco mais que nos meses restantes, graças ao pagamento do chamado décimo terceiro salário (sintomaticamente conhecido, também, como gratificação de Natal). Por isso, uma semana antes do dia controversamente considerado como o de nascimento de Jesus Cristo, um clima estranho toma conta de tudo e de todos, intensificado pelas decorações (árvores de Natal e seus complementos iluminados e coloridos) e pelas músicas típicas, natalinas ou alusivas a afetos exacerbados (solidariedade, bondade...).  Estranho, o tal clima de Natal, porque, apesar de fundamentado em razões benevolentes, é impositivo, autoritário, desconfortável. Torna-se proibido não “entrar no espírito de Natal” e mais ainda bancar o Grinch, um desmancha-prazeres personificado por Jim Carrey no cinema americano.

 

 

 

Uma coisa é não se deixar levar pelo espírito natalino por alguma convicção, sem sofrer por isso. Outra é padecer por não conseguir dele compartilhar por impossibilidade, seja financeira, seja pela falta de pessoas com quem dividir a festa, seja por essas duas causas ou outras. A exclusão não desejada existe e não afeta a poucos. Tanto assim que o pote de generosidades que é destampado nas proximidades do Natal (ficando lacrado e escondido durante o resto do ano) vai em socorro dos extremamente excluídos, que perambulam pelas ruas e praças e se alojam sob pontes e em barracos ou são esquecidos em asilos, orfanatos e prisões. Ocorre que os ofertantes deste socorro de última hora entram em estado de beatitude com seus gestos de presenteadores comovidos, o que não necessariamente acontece com os destinatários dos presentes. Apesar do valor intrínseco de uma boa refeição e de uma roupa nova para um adulto que não costuma tê-las, e de um brinquedo e um doce para uma criança que nunca os recebe, o ato de receber jamais deixa de ser, e também de ser sentido como, momentâneo, esporádico, insuficiente – socorro pontual. A tolice extrema é a única cortina a esconder o fato de que “alegria de pobre dura pouco” e, principalmente, que bondade de rico é passageira, jamais devendo ser confundida com gesto de amor (ainda que haja exceções). A experiência de vida, por seu lado, se encarrega de banir ilusões do tipo “Ainda há esperança!” quando se observa, no Natal, a pontual correria dos possuidores para minorar, minimamente, a tristeza dos despossuídos, sem qualquer atenção para a injustiça estrutural e histórica que produz a diferença entre um grupo e outro.

 

 

 

Talvez a cena que melhor expresse o desconforto que me passa pela mente e provoca arritmia no período natalino, depois de superados meus traumas de infância e juventude, seja a seguinte (com antecipado pedido de perdão pela crueza).

 

 

 

Papai Noel atravessa, de pé sobre a caçamba da picape enfeitada por luzes coloridas, a rua empoeirada da favela, lançando balas e doces à criançada maltrapilha que segue atrás do veículo, pulando, gritando e cantando “Noite feliz” e o refrão de “Jingle Bells” junto com o alto-falante estridente colocado sobre a cabine – apesar de o relógio marcar pouco mais de seis da tarde, no verão abafado.

 

A picape, que seguia lentamente, assim evitando deixar os meninos e meninas para trás, de repente estaciona num arremedo de praça, em cujo centro há uma palmeira real, lugar escolhido para a distribuição dos presentes (bolas, bonecas, carrinhos e caminhõezinhos – nenhum celular ou videogame... ou livro). Funcionários descarregam os sacos e caixas no lugar ermo e na palmeira é fixado um banner, que depois sairá nas fotos que ilustrarão os textos para jornais e sites da internet, como registro e divulgação do evento beneficente promovido pelo Fundo Social de Solidariedade da Prefeitura em parceria com as entidades assistenciais da cidade.

 

 

 

Quando Papai Noel – negro, este ano – senta-se no banco improvisado para distribuir os presentes aos miúdos impacientes que estão na longa fila, dele se aproxima Jesus Cristo. Coroa de espinho na cabeça, pano branco manchado de sangue como único vestuário cobrindo-lhe da cintura até um pouco acima dos joelhos, chagas expostas, olhar sereno e compassivo, o Filho de Deus cumprimenta Papai Noel apertando-lhe as mãos e, em seguida, diz, inclinando o dorso e abrindo os braços:

 

 

 

– Vinde a mim as criancinhas!

 

 

 

Os jovens e adultos, ao redor, expectativas frustradas, se olham entre si e, ato contínuo, perguntam, com raiva estampada nos rostos, dando passos ameaçadores na direção da dupla:

 

 

 

– E nós?

 

 

 

Acorrem rapidamente os policiais que estavam de prontidão na esquina e a pancadaria come solto. Uma verdadeira pancadaria de Natal, presente para o Grinch que, rindo como nunca, vai ao centro da praça e, depois de levantá-los, abraça os dois mais assustados de todos os ameaçados: Jesus e Papai Noel.

 

***

 

Boas festas! Faça com que assim seja, com a consciência do significado delas e das distorções associadas, escapando assim das garras da hipocrisia, da estupidez e, especialmente, do oportunismo desumano de quem lucra com elas o tempo todo e mais ainda em momentos de exacerbação do consumo, vendido como felicidade. Porque amanhã será outro dia e será preciso olhar no espelho e não ver ali um idiota.

 

 

Que as alegrias que desejamos para nós e para os outros sejam genuínas e que possamos fugir às tantas enganações que nos assediam.

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