Modo de vida e jeito de viver
- Valdemir Pires
- 22 de mai.
- 4 min de leitura

Ao definir modo de vida foi dito que:
“Na escolha de qualquer opção existencial, conta o desejo (estritamente individual, no tocante a estilo de vida), mas sem que este seja colocado frente a frente com os limites sociais, econômicos e políticos (modo de produção), na busca de um modo de vida desejável e, ao mesmo tempo, sustentável, ele (o desejo, em si mesmo e por si só) será o motor da locomotiva que conduz ao abismo, que é o simétrico oposto ao céu com que se sonhou ao iniciar a caminhada.”
É conveniente explorar um pouco mais esta afirmativa. Ela deve levar à percepção de que duas forças estão em confronto na quotidianidade de uma existência humana. De um lado, está a moldura social geral (o modo de produção), que limita o quadro (a pintura) por ela contida e sustentada (os modos de vida possíveis sob um determinado modo de produção). De outro lado, está o desejo do indivíduo quanto a como gostaria de viver face às opções que consegue vislumbrar diante de si, num dado momento, que é, ao mesmo tempo, um momento histórico (momento coletivo) e um momento psicológico (momento individual: fase da vida/idade, dilemas e problemas enfrentados, questões existenciais colocadas etc.). Em apenas duas expressões: o dado coletivo (social) e o dado individual (pessoal), um frente ao outro.
Se há duas forças e elas devem produzir um resultado para o indivíduo (que é a vida por ele vivida, afinal), a interação entre elas levará a uma situação de equilíbrio (temporário, com maior ou menor duração): a este equilíbrio se pode denominar momento existencial. Trata-se de um jeito de viver que é uma escolha feita sob os constrangimentos sociais que lhe colocaram limites. Ou seja, o indivíduo vive não do jeito que sonha/deseja, mas o mais próximo disso que pode chegar diante das opções de modo de vida disponíveis naquela específica configuração histórica de um modo de produção sob as quais ele se encontra.
O jeito de viver corresponde a um arranjo entre os desejos/sonhos individuais e as restrições socioeconômicas, política e culturais que configuram os modos de vida. Este arranjo é viabilizado pelo indivíduo no âmbito de suas relações com os outros. Quanto mais amplas essas relações, mais o indivíduo vislumbra possibilidades (maior o repertório de sonhos que pode ter); ao mesmo tempo, mais diversificada a vitrine de modos de vida que pode ver, para que se possa almejá-los ou não. O grau de ambição de cada um e a capacidade de agir em busca do que se coloca como meta de vida, percorrendo um caminho (um trajeto relacional) ao longo do tempo (de vida) determinará o jeito de viver.
O jeito de viver é, pois, um construto, cujo artífice é o indivíduo, partindo de projetos que é capaz de conceber e dos “materiais de construção” que recebe (da família, por exemplo) ou conquista (com o exercício de uma profissão, por exemplo), ao longo das fases da vida. Os mais bem aquinhoados se beneficiam de pontos de partida favoráveis: recebem materiais e concepções alavancadoras, o que não acontece com os de menor sorte. Mas tanto num caso como noutro, o jeito de viver de que se partiu não necessariamente (aliás, raramente) será o mesmo ao longo de toda a vida. Isso fica mais claro quando se percebe que jeito de viver é algo que dá margem a muita criatividade e iniciativa, não obstante as limitações colocadas pelos modos de vida (que são pouco numerosos).
O jeito de viver é o âmbito da existência humana no qual fica preservado algum grau de liberdade individual face à realidade coletiva de que todos fazem parte, posto que o jeito de viver pode, inclusive, confrontar os modos de vida predominantes (embora nunca suplantá-los: por isso se diz “algum grau” de liberdade individual e não simplesmente liberdade). Por exemplo, a vida monástica, isolada, meditativa, é um jeito de viver, que pode ser vivido mesmo diante dos modos de vida predominantes no mundo atual, em que a afirmação individual afasta como indesejável o estilo de vida de monge.
Como se articulam modo de vida, estilo de vida e jeito de viver. Talvez fique claro utilizando-se um exemplo literário: Almas mortas (1842) de Nikolai Vasilievich Gogol (1809-1852). Há na narrativa o modo de vida dos nobres, dos pobres e dos servos (as almas). Donos da terra, os nobres são tão mais poderosos quanto mais almas (servos) declaram (no censo periódico) existir sob seu domínio, em suas glebas. Portanto lhes convém, para se afirmarem nas relações de poder, declarar o maior número possível de almas em suas propriedades. Mas, como pagam tributos sobre essas cabeças, economicamente lhes é vantajoso declara o menos possível. É nessa brecha que se insere Pável Ivánovitch Tchítchicov, um proprietário de almas mortas. Ele as “compra” por migalhas e, possuindo-as (sem as possuir, de fato), torna-se um proprietário, com base em quê, adota um estilo de vida (nobre) que dá materialidade a seu jeito de viver: um jeito de viver cujo estilo de vida é insustentável, porque pertence a um modo de vida que Tchítchicov não dá conta de sustentar. Seu jeito de viver é uma mentira para a sociedade e também para ele. Mas é uma escolha que ele viabilizou, dela colhendo a tanto a dor como a delícia desse seu modo de ser.
A sociedade do espetáculo e do consumo, que o capitalismo configurou e chega a seus extremos no século XXI, está eivada de Tchítchicovs, vivendo de aparências, aparências que enganam inclusive a eles mesmos, conduzindo-os ao abismo, como dito de início aqui (abismo não necessariamente desconfortável, acrescente-se agora). O desafio para escapar dessa armadilha, desse canto de sereia permanente, é buscar um jeito de viver autêntico (seja conformista, seja questionador) em que modo de vida, estilo de vida e jeito de viver estejam arranjados entre si de uma maneira própria, sem deixar de perceber e considerar os limites a este “próprio” quando se está condenado a viver a vida inteira com os outros, uns mais próximos, outros mais distantes. Ao sucesso na lida com este desafio assumido por quem deseja/aceita viver autenticamente corresponderão sucessivos momentos existenciais, numa escalada (sempre sujeita a retrocessos) em que se pode colher o sabor (nem sempre doce) da própria vida, vivida sem qualquer intenção de imitar a de quem quer que seja, não obstante a autenticidade plena/total não seja algo atingível pelo ser humano.
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