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  • Foto do escritorValdemir Pires

Francisco de Assis: uma mensagem que atravessa o tempo



No calendário católico, 4 de outubro é o dia de São Francisco de Assis. Do imenso rol de pessoas santificadas pela fé cristã, Giovanni di Pietro di Bernardone (1181 ou 1182-1226) é uma daquelas cuja justificativa para devoção é muito clara: radical apego à fraternidade, profunda humildade e passiva aceitação da pobreza.


Francisco não considerava apenas seus semelhantes como irmãos, mas tudo que existe: irmão Sol, irmã Lua, irmão gato, irmã orquídea, irmã barata, irmã pedra formavam uma só família, para ele, juntamente com irmão Leão (seu inseparável “cordeirinho de Deus”) e a amada irmã Clara (Chiara d'Offreducci, 1194-1253). Vivesse ele depois de tanto conhecimento científico acumulado, talvez acrescentasse à irmandade a Via Láctea e cada um dos buracos negros e também os irmãos prótons, nêutrons e elétrons, além das partículas elementares. Tudo e todos filhos do mesmo Pai, resultado da mesma zelosa Criação. Que não se desgarrassem do amor fraterno e da obediência ao Pai foi sua mensagem (mais em atos que em palavras), que ecoa límpida mais de oitocentos anos depois.


Por casa dessa família com incontáveis membros, Francisco tomava o mundo, rejeitando abrigos requintados como palácios, castelos, vilas e quaisquer residências de luxo. Mesmo Deus poderia prescindir de suntuosas catedrais, sua onipresença contentando-se com a modesta igreja da Porciúncula (pequena porção, literalmente), que ele restaurou depois que Deus o chamou em sonho para reconstruir sua Igreja. Reconstrução esta que não dizia respeito a templos, mas à reedificação de valores cristãos abandonados: São Francisco foi um grito robusto (embora depois calado) contra a ostentação e a corrupção da Igreja Católica Apostólica Romana de seu tempo.


À prepotência do poder e da hierarquia, que na Itália da Idade Média de Francisco dividia o mundo entre muitos pobres e poucos ricos, alguns poderosos e milhões de submissos, a estrutura patriarcal e imperial da Igreja reforçando o status quo, a essa prepotência o santo antepunha a humildade: se todos são irmãos e iguais perante Deus, a preponderância de um sobre outro é um pecado, um afastamento dos desígnios da Criação, é um defeito que precisa ser corrigido, mesmo que à custa de autossacrifícios. Nesse tocante, Francisco não aceitava limites, chegando a desprezar o próprio corpo: a cada pequeno ímpeto de autoafirmação egoísta ele se castigava impiedosamente, a ponto de consternar seus companheiros.


Portador consequente de tal visão de mundo, da vida, do homem e de Deus, Francisco não poderia, de fato, deixar de passar à História, ele que inicialmente foi tomado por louco, a dançar e cantar nas ruas e praças, pregando sua crença revolucionária mediante chacota e abusos de qualquer transeunte disposto a divertir-se. Equipara-se ele a um Cristo medieval, renovador da mensagem evangélica.


Mas, no fundo, no fundo, tudo é História, um ir e vir de visões em confronto, acerca do que deve ser e do que não deve ser, do que se fazer e do que não se fazer, do que é bom e belo e do que é ruim e feio, do que é vício e do que é virtude – sempre ao sabor de interesses materiais e de poder. E foi então Francisco transformado num ícone, num admirado ícone mundo afora, chamando a si do leão ao colibri, em meio ao verde do campo cortado por límpidas águas correntes: um precursor do ambientalismo, embora não do ambientalismo fajuto das declarações altissonantes das autoridades nacionais e mundiais, propagadas a partir de suntuosas instalações-sedes de organizações multilaterais; embora não do ambientalismo de fachada das classes médias urbanas, loucamente vivendo ao encalço dos confortos que destroem sem trégua as reservas naturais, consumindo combustíveis fósseis como nunca, mas fazendo campanhas pela preservação do mico leão dourado e das matas ciliares restantes.


Francisco não foi isso. Ele é um chamado ao retorno a um mundo já de todo inconcebível, antes mesmo de impraticável, porque chegou ao limite daquilo que sempre se manifestou e se manifestará no ser humano: uma propensão a fazer de si o centro do Universo, tributário de todos os direitos e benefícios, porque maior e melhor que o outro (senão de fato, sempre a caminho, na jornada da endeusada meritocracia).


Francisco foi uma denúncia do que ainda estaria por vir em toda a potência: um mundo em que riqueza e poder se concentram de tal maneira que transforma os ricos e poderosos de seu tempo em humildes portadores de meia dúzia de quinquilharias distintivas, como aquelas possuídas por seu pai, rico comerciante.


A mensagem magna d´ “O pobre de Deus”, título de belíssimo livro de Nikos Kazantzákis (1883-1957) sobre o santo de Assis, é a respeito da necessidade de apego ao simples (material e intelectualmente falando) e ao fraterno (para além da consanguinidade) e de desapego aos bens materiais. Em seu pensamento e em sua pregação é preciso amar a pobreza, não aquela resultante das desigualdades de posses que os homens inventaram e perpetraram, mas a pobreza do ser vivo primordial, que, como todos os animais, exceto o homem, consiste em pegar para si somente o necessário para levar adiante a vida que Deus lhe deu, vida esta que tende, sob impulso do egoísmo exacerbado engendrado pelo processo civilizatório, a uma acumulação desenfreada, que coloca os que a empreendem com sucesso como muito mais dignos de respeito que qualquer tolo franciscano contemporâneo.


Nesse elogio à índole “descentrante” da individualidade, Francisco de Assis se confunde (no caldeirão em que é servida a sopa pós-moderna das crendices e modismos em prol da felicidade) com o próprio Buda, tal como mal entendido pelos praticantes ocidentais que, no começo da manhã e no fim da noite, meditam buscando o Nirvana, e, no intervalo entre esses fazeres praticamente santificantes (sem que a isso se prestasse Sidarta Gautama), vestem suas armaduras de cruzados do dinheiro e vão à luta quotidiana sangrenta, impiedosa, inclusive contra si mesmos.


A felicidade, para Francisco, não é deste mundo, nem é coisa para se “consumir” individualmente. Ela está relacionada à beatitude: profunda satisfação e contentamento na presença de Deus, plena unicamente na vida eterna após a morte. Em vida, a beatitude é possível apenas em pequenas doses periclitantes, conquistadas sob a condição filosófica (mais tarde teológica, por meio das páginas dos Pais da Igreja) de uma sabedoria capaz de aceitação da condição humana sob memento mori e premeditatio malorum, ou seja, resignação diante da morte e dos infortúnios, mantendo sempre o amor à vida, finita e em grande medida dolorosa enquanto dura. Nada, portanto, de “arranjar” uma igreja, templo, prática ou pastor para “comprar” a proteção divina contra o que, em vida, ninguém pode evitar: uma dose de dor e uma porção de frustração; nada de imaginar a possibilidade de o próprio querer receber o apoio incondicional da divindade – isso é o franciscanismo às avessas. E o Papa Francisco sabem muito bem disso, embora na contramão da Igreja que ele lidera.


Pelo sim, pelo não, à revelia de credos, possa ou não o verbo se fazer realidade – pela beleza e pela ternura nela contida, a oração atribuída ao santo doidinho:


Onde houver ódio, que eu leve o amor.

Onde houver ofensa, que eu leve o perdão.

Onde houver discórdia, que eu leve a união.

Onde houver dúvidas, que eu leve a fé.

Onde houver erro, que eu leve a verdade.

Onde houver desespero, que eu leve a esperança.

Onde houver tristeza, que eu leve a alegria.

Onde houver trevas, que eu leve a luz.

Ó Mestre, fazei que eu procure mais:

consolar, que ser consolado;

compreender, que ser compreendido;

amar, que ser amado.

Pois é dando que se recebe.

É perdoando que se é perdoado.

E é morrendo que se vive para a vida eterna.


São Francisco de Assis tem a minha devoção. Devoção de um crente que não aprendeu a crer do jeito que se deve ou se diz que se deve; nem aprendeu a levar à prática, com a força necessária, aquilo em que crê ou pensa crer. Coloco-me à sombra de seu exemplo de vida, sabedor da minha total incapacidade de honrar o abrigo em que ela se constitui, mas acalentando, no fundo do coração, um fiozinho de esperança de que a fraterna oração nunca desapareça do acervo dos mais tocantes escritos que o homem foi capaz de trazer à luz.

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