top of page
  • Foto do escritorValdemir Pires

Escolas: entre “projetos de vida” e planos de morte



Uma ideia-ação originada, possivelmente, da mirabolante combinação de sucessivas notícias americanas (sobre massacres em escolas) com a estúpida apologia ao porte e uso de armas e com mentalidades adolescentes depressivas: agressões mortais a professores e alunos em unidades escolares começam a ser rotina também no Brasil, em mais uma das nocivas emulações tupiniquins do american-way of life. Em um contexto em que o país luta diariamente para se livrar da doença psiquiátrica coletiva indissociável do que se convencionou chamar de bolsonarismo.

É como se os pequenos e frágeis templos do deus conhecimento (o pior demônio, do ponto de vista dos bolsonaristas, domável somente por uma pedagogia militarizada, em parte já derrotada), tivessem que ser, um a um, acuados, depois do relativo fracasso do recente cerco geral levado a efeito contra o sistema de organização e regulação da educação pública, severamente atrofiado. Invariavelmente, os indivíduos que se arvoram a protagonistas isolados nessa guerrilha apresentam sintomas de filiação - não declarada e nem consciente – ao movimento raivoso contra as bases da civilização e da democracia.

O comportamento e as atitudes dos atacantes às escolas são típicos: reproduzem a invariável covardia da atual extrema direita brasileira, que aceita (e até mesmo elogia) como procedimento político pôr de joelhos, sob a mira de arma, aquele que, desarmado, a venceria no argumento, dada a sua indigência intelectual e moral. Não há diferença entre atacar professores e alunos desprevenidos e matar a pauladas o adversário político amarrado ao pau de arara – covardia, covardia. Não que se possa dizer, evidentemente, que entre torturadores e potenciais torturadores de regimes de exceção e isolados assassinos de varejo nas escolas haja uma relação direta, podendo ser tomados como parte de uma mesma ideologia ou organização: eles apenas são faces de um mesmo movimento geral de intolerância e brutalidade, em que as partes e o todo se ligam sem que seja necessária qualquer iniciativa consciente para que assim seja. O mesmo complexo de inferioridade e desejo de dominação ou revanche que subjaz ao atacante escolar alicerça também o comportamento extremado da direita, sempre dependente, para se legitimar, da apologia de uma ou outra suposta superioridade de seus militantes em relação aos demais.

Sob tantos planos de morte (nacionais e individuais) à escola civilizatória e emancipatória, seus pequenos templos (as unidades escolares) nem precisariam de tanto para estarem sob ameaça severa de perda de funcionalidade. Bastaria conversar um pouco com estudantes e professores minimamente conscientes ou frequentar por poucas horas o ambiente escolar real, quotidiano, para perceber isso. Faz tempo, já, que as escolas para as crianças e para os jovens (especialmente para estes) deixam muito a desejar, para aqueles que ali convivem e também para qualquer eventual projeto de desenvolvimento e soberania nacional. Foram convertidas em verdadeiros depósitos de pessoas, por longos períodos diários, totalmente desorientadas e desprovidas de esperança, mergulhadas num ambiente de permissividade excessiva para estudantes e de exigências estapafúrdias para professores (responsabilidades não pedagógicas, papelório inútil, rotinas estressantes, tolhimento de iniciativas e criatividade).

Entre tantos aspectos péssimos da organização escolar atual é difícil escolher um que se possa classificar entre os piores. De fato, o conjunto e a articulação entre as partes são lamentáveis. Nos documentos, até há pontos promissores (não sem conter vieses e contradições); nas práticas, os documentos muitas vezes não são compreendidos e quando são, não existe a mínima infraestrutura ou preparo para materializar as ideias que contêm. Parece até que os documentos foram elaborados por quem nunca esteve em sala de aula e jamais se dispôs a conversar seriamente com professores, alunos e gestores educacionais de base. É impossível tratar adequadamente desse quadro complexo e desanimador em poucas linhas ou horas de debate.

Por esclarecedor (já que flagra a noção de papel da escola na sociedade e na vida do indivíduo), vale a pena chamar a atenção, aqui, para uma “’disciplina” que parece ser a “menina dos olhos” dos mentores da última reforma do ensino, mormente do nível médio: “Projeto de vida”. Para quem, pobre, passou pela escola nas décadas de 70 e 80 do século passado, é inevitável a comparação desta com duas disciplinas daquele tempo: “Educação moral e cívica” e “Educação para o trabalho”. Essas três disciplinas, cada uma a seu tempo, pretendem “encaminhar” o educando para um futuro em tese almejado pela sociedade. Educação moral e cívica deveria domesticar as almas diante do regime militar; havia que incutir valores “democráticos” contra as ideologias de esquerda e a "ameaça comunista". A vacina das reformas democratizantes das décadas seguintes para esta disciplina foi o resgate de disciplinas de filosofia e sociologia, na linha de uma educação para a cidadania. Educação para o trabalho deveria servir para tornar a escola útil para abastecer o mercado, em expansão, de mão de obra minimamente qualificada – deveria fornecer bons trabalhadores, capazes de lidar com novas máquinas e processos. A impressão que se tem é que, agora que há trabalhadores demais para empregos de menos, educação para o “trabalho” é educação para o empreendedorismo – o verdadeiro mote do que estão chamando de “projeto de vida”. É como se a mensagem fosse, para os jovens: não basta que você se prepare para exercer uma profissão com excelente domínio – agora você tem que criar, você mesmo, o emprego, a oportunidade para a sua capacidade profissional gerar remuneração. Foque nisso, e esqueça o resto!

Enquanto se “ensina” “projeto de vida”, ninguém se preocupa em saber o que é projeto, nem vida, pois filosofia, sociologia, geografia, história, ciências humanas, enfim, que ajudam a compreender o mundo, a sociedade, os outros, com que qualquer projeto de vida terá que interagir, foram, uma vez mais, por motivos outros em relação à educação do regime militar, lançados para escanteio.

Alguém mais sensível à realidade da imensa maioria das crianças e jovens (pobres) que frequentam a escola hoje, no Brasil, deve ficar imaginando como soa “projeto de vida” para eles. Dentro da escola, uma multidão de “fracassados” (os professores), tentando mostrar o caminho do sucesso para outra multidão, de potenciais desempregados e subempregados (os estudantes), sob o mote “projeto de vida”, geralmente entendido como concepção e articulação de ações para obter sucesso – financeiro, geralmente. Fora da escola, um grupo pequeno, mas notável e barulhento, de atletas, artistas, digital influencers e semelhantes, conquistando o mundo aparentemente com muito menos esforço e mais eficácia do que os meninos pobres a quem se acena com a possibilidade (remotíssima) de se tornarem empreendedores. É “de lascar”! Chega a ser necessário dar razão ao adolescente que, dia desses, respondeu à professora que o inquiriu sobre o objetivo de sua vida: “Comprar uma moto.” Nos primórdios, o homem andava de quatro patas. Não deixa de representar progresso que agora ande sobre duas rodas, e acionadas por potente motor. Sob certa (e equivocada) visão de mundo, de homem, de civilização, de cultura, de vida e de projeto, ter uma moto é um projeto de vida admissível. Projeto questionável, de um ponto de vista estritamente moralista, se a moto for, por exemplo, desejada para, conduzida levando um garupa mascarado e armado, ser utilizada para praticar assaltos aos transeuntes. Mesmo assim, não se pode negar que, neste caso, se trata de um intrépido comportamento empreendedor, em torno de um “projeto de vida”, que carrega em si um plano de morte.

29 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page