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  • Foto do escritorValdemir Pires

A presença do passado



O passado não é simplesmente um tempo que se foi, tampouco é mera sombra que se lança sobre o presente. O passado é determinante do presente e também do futuro. É determinante do presente em decorrência da causalidade: o que hoje brota, floresce ou frutufica, foi antes semeado. É determinante do futuro porque o eu que se constituiu na dinâmica temporal que configurou o atual bloco passado-presente é a plataforma a partir da qual se lança o futuro. O indivíduo sai do passado, mas o passado não sai do indivíduo, parte constitutiva fundamental que é do eu que hoje age intencionando este ou aquele futuro. Os sonhos hoje acalentados estão atados a uma história de vida, de que o presente é ponto de chegada e o passado é o trajeto percorrido. É por isso que uma pessoa cujo passado tenha sido pobre e que permanece, no presente, na mesma condição, dificilmente sonhará “alto”. Aqueles para quem ter um meio de transporte pessoal (carro ou moto), livrando-se do infernal transporte coletivo de país subdesenvolvido (ônibus ou metrô, quando não mototáxi) já é um sonho quase inatingível, quase que impossivelmente perseguirão o objetivo de ser, por exemplo, diretor para a América Latina de uma empresa multinacional. Da mesma maneira, os filhos de um pedreiro com uma empregada doméstica raramente se tornarão filósofos ou poetas com algum grau de reconhecimento, tendendo muito mais a “bem-sucedidos” profissionais da área administrativa ou, hoje em dia, “operários” de qualificação média de empresas de tecnologia da informação.


O modo como se organiza a vida coletiva com a mediação das trocas mercantis é poderoso. Ele coloca cada um “no seu lugar”: os de cima no pedestal e os de baixo ao rés do chão. E quando um afortunado de baixo chega ao pedestal, o que se faz é lançar sobre ele os holofotes para mentir: “Vejam! Quem se esforça consegue.” E “la nave va”.


Aqueles que furam o formidável bloqueio que reserva a cada um o destino que “lhe cabe” nas relações econômicas e sociais, deixando de trafegar em sua “faixa de renda” e “invadindo” outra, recolhem o benefício dos confortos materiais correspondentes. Todavia, por mais que insistam e se esforcem, jamais serão parte do mundo a que se dirigiram sem serem convidados. Eis o grande dilema dos novos-ricos. Eis o motivo para a busca de títulos honoríficos (baronato “artificial” e não fundamentado em laços consanguíneos) na fase de transição do feudalismo para o capitalismo, quando a “ética do trabalho” e do empreendimento não estava ainda plenamente consolidada. Eis o leitmotiv dos fazeres e buscas dos indivíduos que povoam a vida urbana parisiense nos séculos imediatamente posteriores à Revolução Francesa, tão bem retratados por Honoré de Balzac (1799-1850), ao sabor dos acontecimentos modernos, dos quais o romance se tornou retrato à perfeição.


O passado se incrusta no DNA psicológico do indivíduo, define o seu eu mais que qualquer outra coisa. O sujeito que vive um presente que não é decorrência “natural” de seu passado, mantendo-se fora na trajetória da classe de onde se originou, este sujeito leva uma vida conflitiva. Sua necessidade de autoafirmação pode ser uma, talvez a principal, causa de sua reconhecida capacidade de realização, mas é, ao mesmo tempo, o que o consome como o fogo à madeira seca, a ponto de nele se apagar qualquer possibilidade de configuração de um eu satisfeito consigo mesmo.


Ao sujeito “fora da casinha” resta deixar-se consumir pela chama da inadequação ou, para seu próprio bem, reinventar-se a partir de lógicas outras que não as da sociedade de consumo e da performance associada à da imagem/vaidade. Até para que permaneça e consiga se sentir como “sujeito”, uma individualidade com algum grau de controle sobre seu pensamento e sua ação.


Em tempos de classes médias urbanas cujos indivíduos (a ela pertencentes) se afundam na multidão, a isso psicologicamente se recusando, mas materialmente não conseguindo evitar, o salvar-se do eu conflitivo produzido pela inadequação social (aquele eu que sabe não poder ser o que almeja para sentir-se totalmente integrado e aceito) é uma tarefa dolorosa e, quiçá, destinada ao fracasso. E isso explica tantas estratégias de fuga, como os recursos da autoajuda, da imersão em “experiências/vivências” turísticas excepcionais, da religião alienante ou fundamentalista, da “doação” da vida a causas extremas.


O tempo histórico típico da economia das classes médias e da política democrática (das opiniões médias, não radicais) é um tempo em que o eu imerso nas águas rasas do rio médio busca em vão escalar a montanha do superior, profundo, não obtendo mais do que uma sisifosidade (condição de Sísifo, que leva a pedra até um ponto do morro, deixando-a cair e voltando para novamente carregá-la, isso sem cessar) que é, no fim das contas, a essência da condição mediana nas sociedades contemporâneas. Nesse tempo histórico, o tempo cronológico aparece aos indivíduos de classe média como a mais escassa das riquezas, impedindo-os de dedicar-se à busca da própria felicidade, premidos pela sobrevivência. Isso porque quem vem de um passado pobre e infeliz vive um presente de frenética busca por um futuro rico e feliz – que nunca chega, mas está logo ali...

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