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  • Foto do escritorValdemir Pires

A ninfa inconstante




Sobre A ninfa inconstante, de Guillermo Cabrera INFANTE, trad. de Eduardo Brandão (São Paulo: MEDIAfashion, 2012, 256 p.)

 

            Duas características são marcantes em A ninfa inconstante, de Guillermo Cabrera Infante: a profusão de citações diretas e indiretas (intertextualidade, abarcando inclusive obras suas) e a brincadeira, o jogo com as palavras (“A cigarra vive um só verão, mas o cigarro menos. De acordo com a etimologia. Entomologia.” - p. 44; “Vacante era o nome desta bacante.” – p. 73; “Kyrie eleição kyrie ereção” – p. 98; “os fados estavam lançados” - p. 88). E elas dão à narrativa uma graça acima do esperado de um romance, que, apesar disso não deixa de alcançar profundidades gratificantes.

            Numerosas são as menções a atores e a filmes de cinema, além das salas de projeção de Havana, frequentadas pelo narrador (“Que seria de mim sem o cinema?” – p. 248), de quem não se conhece o nome (ao contrário do que acontece com seu melhor amigo, Branly); também músicos, cantores e peças musicais são lembrados (de Beethoven a Elvis Presley), especialmente bolero (palavra recorrente na narrativa). “Esqueça o tango e cante um bolero. Não é assim?” (p. 211) Aliás, a história toda tem um clima de bolero, ouvido, cantado ou dançado, logo após uma sessão vespertina de cinema, num dia quente à beira-mar. Claro, o cenário é Havana (pré-comunismo), cujas ruas, hotéis, cafés, restaurantes, táxis e seus motoristas (“máquinas de aluguel”) mencionados são tantos, que a geografia da ilha é praticamente uma personagem do livro.

            Os escritores e poetas citados, que contribuem para o perfil pernóstico e pedante do narrador (cheio de latinismos e expressões em inglês), são tantos, que provavelmente nenhuma outra obra literária iguala, nesse quesito, A ninfa inconstante. Se nenhum foi esquecido aqui (e deve ter sido), são explicitamente mencionados: De Quincey, Maupassant, Bradford,  Sterne, Swift, Guide, Wilde, Ovídio (“Oh, Ovídio! Invidio. Esse escritor de boleros.”), Byron, Eliot, Górki, Sartre, Guillén, Unamuno, Virgílio, Dostoiévsky, Tchekhov, Hess, Proust, Shakespeare, Shaw, Dante, Hemingway (merecedor de quase duas páginas: 222-223). Indiretamente, comparecem outros, pela menção de elementos da obra (Ulisses, Dom Quixote, por exemplo) e pela utilização de trechos, como este, que abre O estrangeiro, de Camus, trecho não atribuído, embora entre aspas: “Mamãe morreu ontem. Ou foi anteontem?” (p. 203)

            Cai bem a Estela Morris, a ninfa inconstante de quem se fala (“Ela se parecia, juro, com a Brigitte Bardot.” – p. 55), o epíteto de estrangeira, ao modo de Camus – alguém que estranha o mundo em que vive e que é estranho aos outros, vivendo um dia atrás do outro sem qualquer apego ou desígnio. E ao jornalista-escritor que por ela se apaixona à primeira vista, serve-lhe perfeitamente a luva de Nietzche (longamente citado na p. 231), no que diz respeito à tese do eterno retorno. A ela ele retorna sempre, prisioneiro, mas desejoso (“Mesmo que fosse meio século, um século depois, não passou um dia da minha vida sem que voltasse a vê-la, de pé, ali à sombra da loja da Woolworth” – p. 89); entretanto, ele ou qualquer outro (ou outra), para ela, nada.

            Sim, é a da manjada história de um senhor que se deixa seduzir (ou seduz?) uma menina que trata A ninfa inconstante. Estela, “Estelita”, descoberta aos quinze, quando buscava emprego de recepcionista, e levada ao motel ao completar dezesseis anos, é a própria Lolita latino-americana, cubana, uma não devendo nada à outra, embora dívida tenha Cabrera Infante com Vladimir Nabokov, escritor que não consta da lista dos mencionados no romance, mas que nele é claramente homenageado.

            É evidente que o fim desta história é triste, inevitavelmente triste:  o trecho “(...) ela morreu [sem que se possa saber como] e eu vivo para escrever este livro. Este paraíso nos salvará, este inferno nos condenará: um livro, a vida.” (p. 241) é a síntese um acontecimento trágico, que fica para o final do livro (como habitualmente), ao contrário do que acontece na história de Cláudia (de algum modo outra ninfeta), em No teu deserto, de Miguel Sousa Tavares, onde a morte dela é um episódio que abre o romance: “(No fim, tu morres. No fim do livro, tu morres. Assim mesmo, como se morre nos romances: sem aviso, sem razão, a benefício apenas da história que se quis contar. Assim, tu morres, eu conto. E ficamos de contas saldadas.)”

            Mas nada de tristeza até mais ou menos lá pela p. 187 (impossível falar em capítulo, pois as seções não são numeradas). Até este ponto, a partir de onde a narrativa se torna mais reflexiva, o clima é o da aventura entre uma menina que fugiu da madrasta e de um homem que abandonou a família, vivendo aqui e acolá, precariamente. Ele, culto e romântico, apaixonadíssimo; ela, belíssima, sensualíssima, ignorante e um agelasto (aquele/a que não ri). De modo que nos diálogos ela se torna a infeliz proprietária de um bordão (“O quê”) diante das falas alusivas e elusivas dele, cheias de ironia, humor e citações. Por exemplo:

 

            “– Lentos, lentos, corram, ó cavalos da noite.

            – O que é isso?

            – Um verso.

            – Você faz versos?

            – Eu não. Um amigo que se chama Ovídio.” (p. 38)

 

            “– Ela arpeja?

            – Não se diz assim?

            – Se diz, só que com agá.” (p. 43)

 

            “– Você é um romântico, sabe?

            – O romantismo passou de moda com a música de Chopin.

            – Quem é esse?

            – Era o pianista da orquestra de Chepín Chovén.

            – Nunca ouvi falar.” (p. 152)

 

            Dizer que A ninfa inconstante é sobre amor e tempo é ousar pouco, quase nada. “Amar quer dizer, segundo o bolero, encontrar sua deusa. (...) Ardor aumentado: puberdade nova, adoração do novo.” (p. 56); “Virgílio se enganou. O amor não conquista tudo. O amor não conquista nada. Melhor ainda, o nada conquista tudo. O nada é onipotente. (p. 192) – entre as duas citações, páginas e páginas, mas sobretudo, o tempo que passou. “Segundo a física quântica, pode-se abolir o passado ou, pior ainda, muda-lo. Não me interessa eliminar e muito menos mudar meu passado. Preciso é de uma máquina do tempo para vive-lo de novo. Essa máquina é a memória.” (p. 9); “O passado é um fantasma que não se deve convocar com médiuns ou invocar com abra-essa-obra. (...) O espírito do passado sempre está aí.” (p. 15); “Porque tudo passa na recordação, ou antes, passou no tempo.” (p. 254).

Seria preciso, aqui, pelo menos algumas palavras sobre Branly, mas esta resenha já foi longe demais, depondo contra a escassez do tempo, a "pouquidade" da vida.

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