A economia mercantil e seus cinco modos de vida
- Valdemir Pires
- há 6 dias
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O capitalismo é um modo de produção, como teorizou Karl Marx (1818-1883), com grande e duradouro impacto, desvendando o funcionamento da sociedade de classes que se desenvolve por meio da acumulação de capital, que é uma forma de exploração do trabalho sem coação direta (como no escravismo) ou vinculação por descendência (como no feudalismo), que o sistema de trocas (mercado) viabiliza e disfarça.
O capitalismo tornou possível a mobilidade de classes. Enquanto nos tempos feudais nobres e plebeus nasciam e morriam nobres e plebeus, na era capitalista a classe em que alguém nasce não necessariamente será aquela em que morrerá: tanto um operário pode vir a ser capitalista (ainda que pequeno), quanto um capitalista pode perder esta condição se não mantiver operando as engrenagens do capital sob seu comando.
Sob o capitalismo, portanto, os modos de vida (conceito que é neste ensaio apresentado) não se limitam aos quatro existentes na fase histórica anterior do desenvolvimento econômico, a saber: nobre e plebeu (modos de vida básicos), monástico e militar (modos de vida derivados). Uma vez tornados sustentáveis (por meio da acumulação de capital ou da oferta de força/habilidade de trabalho), diferentes modos de vida podem ser vivenciados/experimentados, no capitalismo, retendo uma relativamente numerosa classe média (grande novidade desse modo de produção) a capacidade de inovar nesse tocante.
Tendo em vista que qualquer modo de vida é viável somente na medida em que possam seus adeptos sustentá-lo economicamente, fica claro que nem todos podem escolher o modo de vida que lhe parece o mais conveniente. Aos mais ricos abrem-se maiores oportunidades; aos mais pobres restam as opções menos onerosas. Nem se imagine a possibilidade de um operário adotar o modo de vida de turista perpétuo, indo de cidade a cidade em diferentes países, pois o trabalhador pode, quando muito, realizar uma ou outra viagem barata de tempos em tempos. Mas ele pode, entretanto, em vez de se tornar um religioso caritativo com vida familiar padrão, optar por ser um solteirão boêmio, perdido (e encontrado) nas noites dos finais de semana.
O modo de vida é uma espécie de nicho no universo do modo de produção. E a ele se liga, como aspecto mais aparente, um estilo de vida. A realidade última/verdadeira de um indivíduo localiza-se na sua condição de classe – é herdada, não escolhida; o seu modo de vida diz respeito ao nicho em que ele consegue se colocar para usufruir ou sentir-se usufruindo a melhor vida possível dentre as que lhes são acessíveis – é conquistado mediante trocas mercantis e relacionamentos sociais. Já o estilo de vida, é uma imagem que se pretende passar de si aos outros, não raro o indivíduo iludindo-se a si mesmo com ele.
Classe (condição decorrente do lugar ocupado no modo de produção), modo de vida (opção feita diante do leque de possibilidades de acordo com a condição de classe) e estilo de vida (imagem construída com a finalidade de ser visto pelo outro conforme se deseja) são os elementos que se combinam, sempre conflituosamente, na psique e nos relacionamentos interpessoais e sociais, sustentando uma opção existencial.
Na economia mercantil contemporânea, sob a lógica da acumulação de capital (mesmo de capital financeiro e ainda que ela receba outro nome, como, por exemplo, socialismo de mercado), cinco são os modos de vida: super-rico, rico, classe média, pobre, miserável.
Cada um desses modos de vida se define quantitativamente, em função do patrimônio e da renda do indivíduo considerado. Há um nível absoluto e um nível relativo para cada um. O absoluto é o definido globalmente: neste nível, o super-rico é aquele que figura na lista de algumas dezenas de bilionários existentes no planeta. No nível relativo, os super-ricos são os detentores dos maiores patrimônios em cada país. Os demais modos de vida obedecem à escala decrescente, até chegar ao miserável, que não tem patrimônio significativo e sua renda é nula ou tão pequena que não lhe garante mais (ou sequer) o sustento diário.
Os extremos da escala de modos de vida são uma espécie de desvio (útil à exploração e à dominação pelos super-ricos) do objetivo do sistema de trocas, que é viabilizar a cooperação voluntária (no sentido de não obtida pela força, como no escravismo) entre os agentes econômicos para a produção e a distribuição da riqueza material. Se o sistema funcionasse perfeitamente ou com imperfeições não exageradas do ponto de vista da distribuição da produção obtida com a participação de todos, não haveriam super-ricos nem miseráveis. Mas não é isso que efetivamente acontece, como demonstram a História e os dados da economia atual, na qual, aliás, parece haver concomitância entre fortunas pessoais/familiares bilionárias e bilhões de famílias na pobreza absoluta.
Dentro da “normalidade” da economia de trocas impulsionada pelo “instinto” individual de acumulação – que Schumpeter justifica como zelo do acumulador com seus descendentes , Keynes aponta como precaução em relação ao futuro, e Marx denuncia como ganância de uma classe – movem-se os ricos, a classe média e os pobres. Estes, lutam pela sobrevivência e, garantida esta, por sonhos materiais que proporcionam confortos e prazeres por cuja busca onerosa sentem-se realizados.
Na conceituação marxista de modo de produção, os capitalistas (os ricos, proprietários dos meios de produção) e os operários (o pobres vendedores do pouco que têm: sua força de trabalho) são as classes fundamentais da economia e da sociedade mercantil sob a égide do capital; os miseráveis são o lumpen, resíduo desprovido de importância para a evolução histórica; a classe média é um amontoado de indivíduos nem para lá, nem para cá na contradição de classes fundamental que cabe à mobilização, organização e revolução dos trabalhadores (os pobres) superar, extinguindo a sociedade classista e chegando ao comunismo, com baldeação na estação do socialismo.
Com base no conceito de modo de vida, sem desconsiderar a existência de exploração e dominação, o capitalista não é, necessariamente, o detentor dos meios de produção (um fundo de pensão, por exemplo, pode sê-lo, reunindo aplicações financeiras de um condomínio de pessoas de classe média), assim como não há qualquer resquício do “capitão de indústria”, o sujeito que comanda diretamente a força de trabalho explorada – e não se trata apenas de colocá-lo no topo de da estrutura administrativa hierárquica que caracteriza a moderna corporação, pois simplesmente aquela função desapareceu tal como concebida até o século XIX. Da mesma forma, a expressão operário, atualmente, soa como caneta tinteiro, fogão a lenha, carruagem, camponês: figura no passado industrial, na era das tecnologias da informação.
A classe média atual, que em Marx é a classe sem feição, é, de fato, a que dá feição à economia e à sociedade contemporâneas, seja no capitalismo liberal americano, no capitalismo social-democrata sueco/norueguês/dinamarquês ou no socialismo de mercado chinês. Prensado entre o desejo de ser rico e o risco incessante de se tornar pobre, o indivíduo de classe média é o que se movimenta para se manter à tona no mar de mercadorias que lhe são oferecidas para a manutenção de um padrão de vida consumista, necessário à sustentação da indústria de bens de consumo de massa apresentados pela propaganda como necessários e/ou distintivos. Sua felicidade baseia-se no consumo (tanto ostensivo quanto seu patrimônio e sua renda podem alcançar, a fim de parecer ombrear o rico), no espetáculo (lazer e entretenimento, o turismo internacional no topo da lista mais “nobre”.) e nos esforços para “aparecer bem na foto” (moda, gastronomia, “cultura”).
Sem classe média, não há consumo de massa; sem consumo de massa, não há produção massiva e standardizada/padronizada (como exige a firma gigante para ser viável); sem produção massiva, não há escala suficiente (compradores em grande número e empresas gigantescas que os abastecem) para que o capital produtivo acumule o suficiente para sustentar-se e deixar livre uma porção de riqueza a ser apropriada pelos intermediários, como os comerciantes e os especuladores financeiros, por exemplo. Não está claro que o desafio vencido pelos famosos “milagres econômicos” foi, sempre, a expansão das classes médias urbanas? Resta dúvida sobre isso observando o atual caso chinês?
A esta altura, convém esclarecer que a palavra classe, na expressão classe média, aqui não significa classe no sentido marxista, pois é apenas um vocábulo para se referir a pessoas que, no conceito de modo de vida (que implica mobilidade, para cima ou para baixo), encontram-se no meio: não são pobres, nem ricas; tendem ora para cima, ora para baixo, como estando em uma gangorra. Não se trata, pois, de classe, nem no sentido “em si” (condição), nem no sentido “para si” (consciência da condição) – trata-se, mais, isso sim, de um grupo de indivíduos enfrentando uma situação existencial face a uma realidade coletiva/social que os obriga a se autoafirmar com base em valores que assimilam olhando para cima (para o modo de vida dos ricos), enquanto transitam por uma ponte que ameaça cair e derrubá-los no meio de outros indivíduos, cujo modo de vida temem e, muitas vezes, abominam. O medo e o desejo batem no peito do sujeito de classe média como a espora no cavalo: obriga a seguir em frente.
O modo de vida rico pode ser considerado, portanto, o ponto de chegada do sonho acalentado pelo indivíduo de classe média. Nele vai se aninhar, evidentemente, uma parcela pequena dos que partiram da classe média (tendo nascido nela ou a ela ascendido, por esforço, sorte ou uma combinação desses fatores). O tamanho dessa parcela depende fortemente de como o modo de produção funcionou abrindo ou fechando a porta de acesso de um compartimento (classe média) a outro (rico). A chave para abrir essa porta depende de muitos elementos ou de combinações de elementos que se manifestam na história econômica mundial e de cada nação.
O modo de vida pobre é o enfrentado pela maior parcela da população mundial e, também, da maioria dos países, variando conforme seja impulsionada para cima (classe média) ou para baixo (miserável). Sendo que o avanço tecnológico recente tem produzido efeitos assustadores: ao eliminar empregos tradicionais e não colocar outros no seu lugar, em número suficiente, este fenômeno tem dificultado a ascensão social e produzido desalento nas novas gerações. A probabilidade de uma geração alcançar melhor padrão de vida que a anterior (o filho tornar-se mais rico que o pai), antes um dado, nas economias mais desenvolvidas, há décadas deixou de se manifestar.
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