Stoner
- Valdemir Pires
- 8 de ago.
- 3 min de leitura

Leia na coluna Café com Pires, no Diário do Engenho
Alguns romances, na história da literatura, criam personagens que se tornam verdadeiros arquétipos de comportamentos, sentimentos ou situações. Como explicar o amor (romântico) impossível? Romeu e Julieta, de Shakespeare, bastam. Como entender o remorso? Raskólnikov, de Dostoiévski, é suficiente. Como adentrar “o clima” urbano da Paris (borbulhante como champanhe) do século XIX? Balzac, acima de todos, com a vasta Comédia Humana. Os grandes romances e contos contribuem para configurar o modo coletivo de sentir e de reagir ao mundo, portanto transformando-o a partir da arte literária, do manejo expressivo da palavra.
Stoner (1965), de John Williams, pode ser colocado na estante dessas obras alicerçantes. O que é ser estoico (essa atitude filosófica hoje em moda, no discurso; rara, porém, nas práticas quotidianas) ou resiliente (essa necessidade face à vida dura da modernidade e pós-modernidade)? É viver como viveu o professor universitário William Stoner. Sua vida (1891-1956), que atravessou as duas guerras mundiais, vista em retrospectiva, é de uma beleza pungente. Vivê-la, entretanto, como ele a viveu, é que são elas: precisou ser como sugere seu sobrenome – algo como petrificante ou petrificador – ou seja, sustentar-se com seus próprios meios físicos, desprovido de meios para reclamar ou pedir ajuda.
De origem humilde, filho único de pequenos agricultores, Stoner foi para a Universidade do Missouri (UM) para cursar Ciências Agrárias – assim se capacitaria para melhorar o desempenho da propriedade paterna. Mas desviou para Língua e Literatura, tornando-se professor nessa área na mesma universidade em que se graduou e doutorou.
Foi um homem de um único lugar (a vida inteira na UM); de apenas dois amigos (o idealista David Masters e o pragmático Gordon Finch), se não for considerado como tal seu inspirador nas Letras e protetor na vida profissional, o professor Archer Sloane; de somente duas mulheres: Edith Elaine Bostwick, com quem se casou, e sua aluna Katherine Driscoll, com quem conheceu o amor. Teve uma única filha, Grace, que se perdeu no alcoolismo; e escreveu um único livro, de pequena repercussão.
Stone amou profundamente a literatura e a docência. Nunca abandonou esse amor, apesar de todos os reveses que lhe foram impostos na vida acadêmica, perseguido pelo implacável Hollis N. Lomax. Manteve a vida toda um respeitoso amor, desde o início desiludido, pela esposa desequilibrada e perversa, deixando-o sublimar-se no extremo carinho pela filha; e abriu mão do amor tardio e profundo pela “garota Driscoll”, ceifado pelas maquinações de Lomax. Viveu uma amizade longa e confortante com Gordon. E isso foi tudo, em meio às dificuldades para se sustentar economicamente e se manter em pé diante das típicas maquinações do ambiente universitário, tudo isso num mundo violento e incerto ameaçado por duas guerras sem precedentes.
Stoner é um romance escrito com profundidade (em termos de conteúdo) e, ao mesmo tempo, leveza (quanto à forma). É impossível parar de lê-lo. O primeiro capítulo é praticamente um conto-chamariz (24 páginas entregando uma história curta completa), apresentando a personagem, suas origens e a principal decisão de sua vida. Os demais seguem uma lógica cronológica, chegando até a morte do herói. Terminada a leitura, fica na alma um desejo: o de ter força e sabedoria para aceitar o destino e a morte, da vida (dessa estranha vida) colhendo o que a busca do amor e da beleza permitir.
(Referência: WILLIAMS, J. Stoner. Trad. de Marcos Mafferi. Rio de Janeiro: Rádio Londres, 2015, 314 p.)
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