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  • Foto do escritorValdemir Pires

O verão perigoso



Sobre O verão perigoso, de Ernest HEMINGWAY, trad. de Ana Zelma Campos (Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006, 240 p.)

 

            Vida intensa, voluntariamente dançando diante da morte, provocando-a, para, no final, dizer a ela: “Quem manda sou eu, saio quando quiser”: Ernest Hemingway. Esportes, carros, barcos, viagens, comidas, bebidas, touros e toureiros – beirando a ou chegando ao nível da ostentação; combates com armas – reais, guerras, mesmo, campos de batalha. Na obra que a seguir se comenta, este heroico mestre das palavras (diretas e secas) conta episódios em que se se colocou frente a frente com a morte, saindo ileso: entrou em uma jaula com um lobo; esteve em avião em que os pilotos deixaram o manche nas mãos dos toureiros que eram transportados; atirou em cigarros que amigos mantinham na boca, como alvos.

            O verão perigoso , escrito em 1959-60, não é um romance. É uma reportagem sobre touradas no mundo dos touros e toureiros por excelência, a Espanha, escrito sob encomenda, pouco antes do tiro fatídico que o autor veio a desferir contra si, em 1961, pouco depois de completar sessenta anos. Mas, abstraindo-se o fato de nele se movimentarem o próprio Hemingway, sua esposa Mary e seus amigos, pode ser lido como romance, já que a narrativa, em primeira pessoa, assim faculta. Tudo acontece numa sucessão de cenas e como se os protagonistas fossem personagens; conta-se uma história, enfim.

            É a história de Antonio Ordóñez, a quem Hemigway considera “O matador”, maior entre os maiores das touradas, ombreando os míticos Manolete (que é uma espécie de persona non grata em O verão perigoso, p. 106) e Belmonte (que deu início à tourada moderna). É uma quase-biografia, condensada na narrativa e descrição de uma série de touradas em que Ordóñez disputa a supremacia com seu cunhado Luis Miguel Dominguín, outro grande, mas não tanto, no parecer de Hemingway: “Não gostava do jeito com que manejava a capa.” (p. 67); “suas verônicas não me comoviam” (p.120); mas “Era um bandarilheiro maravilhoso” (p. 129).

            O livro traz numerosas “narrações” de touradas, descrevendo e avaliando os touros, criticando os juízes (presidentes) por concederem ou não as orelhas dos animais pelo desempenho dos toureiros, e apontando grandes feitos e falhas lamentáveis dos matadores. Numa delas, p. 108, Ordóñez ganha o máximo elogio do reconhecido apreciador do touromaquia:

 

Antonio fez um sinal para o presidente, pedindo-lhe permissão para encerrar as bandarilhas. Com um único par colocado, pedia para enfrentar o touro novamente com a muleta.

Guiou-o tão suave, simples e magistralmente, que cada passe parecia ter sido esculpido. Executou todos os passes clássicos; depois parecia querer refiná-los e torna-los mais puros e perigosos, quando encurtou intencionalmente seus naturales, avançando com o cotovelo para trazer o touro cada vez mais perto, o que parecia ser impossível. Era um touro grande, inteiro, bravo, forte e com bons chifres, e Antonio executou com ele a faena mais completa e clássica que eu já vira.

 

            (Neste breve trecho aparecem vários termos técnicos da touromaquia, abundantes em todo o livro. Por isso, foi boa ideia nele incluir, como apêndice, um glossário. A Introdução, escrita por James A. Michener em 1984, também é de grande ajuda para esclarecer os termos e situar a obra no contexto dos acontecimentos de que trata. Além disso, o livro traz algumas fotos muito bonitas, que permitem identificar “personagens” e ter ideia de algumas “cenas” e “cenários”.)

            A tourada é elevada a arte, o toureio a artista, na concepção hemingwayana, com a diferença de que “Um toureiro jamais vê sua obra. Não tem oportunidade de corrigi-la como um pintor ou um escritor. Não a pode ouvir como um músico. Pode apenas senti-la e ouvir a reação da plateia.” (p. 214) Por isso Ordóñez brincava com seu amigo escritor, dizendo que em tal dia iria “escrever” uma faena.

            As touradas narradas no livro acontecem em numerosas cidades espanholas (além de Madri, Pamplona, Bilbau, Santander, Logroño. Zaragoza Málaga, Sevilha etc.), algumas muito distantes entre si, implicando cansativas e às vezes perigosas viagens de automóvel, inclusive à noite. Elas são também narradas com detalhes, aproveitando-se para mostrar um pouco do país que Hemingway amou a vida toda, tendo, quando mais jovem, combatido em sua cruenta Guerra Civil (1936-39) – “Passmos por locais onde se lutara durante a Guerra Civil.” (p. 133). Hotéis, restaurantes, casas de amigos que hospedam o grupo que se desloca são mencionados e comentados em suas qualidades e defeitos. As comidas e bebidas que consomem, em festa, são descritas com gosto:

 

Eu saboreava um prato de delicadas enguias fritas em alho, que pareciam brotos de bambu, levemente crocantes nas pontas e de textura suave. Enchiam uma travessa grande e funda e eram uma delícia; para o inferno quem quer que tivesse de ficar perto de mim num quarto fechado ou mesmo ao ar livre. (p. 99)

 

           

            Mas sabor, sabor mesmo, para Hemingway não era, naquele verão, o que se sentia na boca, na língua, mas nos recônditos da alma:

 

            “– E porque foi que voltou aos touros, Ernesto? – perguntou-me um dos antigos amigos.

            – Para ver o Antonio, respondi.” (p. 137-38)

 

            Afinal, ele tinha escrito, antes da viagem, ao amigo, dizendo-lhe que: “desejava vir para escrever a verdade, a verdade absoluta sobre seu trabalho e seu lugar nas touradas, fazendo um registro permanente, algo que ficasse como um documento depois de nossa morte” (p. 96). E ficou, para o deleite de qualquer bom leitor, adepto ou inimigo da touromaquia.

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