Dia iluminado de início de outono. Ventinho levemente frio pela manhã, amenizando o efeito do sol quente, ainda primaveril. Silêncio nas redondezas e também na pequena casa caiada de azul claro, alugada no bairro distante do Plano Piloto. As folhas de sibipiruna caem no asfalto esburacado, misturando-se com as britas que começam a se soltar. O lixeiro ainda não passou e o lixo está acumulado, lá fora, porque o caminhão falhou na última coleta. No terreno baldio vizinho, um velho robusto está prestes a começar uma capinação. O mato está à altura da cintura dele.
Conrado faz café (o cheiro é bom) e organiza a mesa para o desjejum. Um pão amanhecido, margarina, uma banana. Zapeia no celular. Boceja.
Vigésimo segundo dia de isolamento total. A comida vai acabar. O dinheiro, em seguida. A esperança e o equilíbrio psicológico também estão se esgotando. Será possível não morrer? Haverá vacina? E remédio? E respirador, se for necessário? Odete conseguirá evitar a contaminação?
Liga para Etelvino. Atende a mulher.
– Bom dia, Helô. Como ele tá?
– Ele morreu, Conrado, lá pela meia-noite – ela responde chorando.
– Poxa! Cê tá se cuidando? – ele lamenta, depois de um silêncio vazio de repertório para reagir.
– Tô. Sim. Ei, preciso ir, tão me chamando no portão...
– Tá. Força. Estou para o que precisar, tá?
Senta-se à mesa sorvendo o café quente. Passa a margarina no pão. Come e bebe lentamente. Zapeia no celular. Boceja.
Não sabe o que fazer. Quanto a Helô e Etelvino (não pode visitá-la por estar contaminada, não tem como ajudar, não haverá velório), quanto a Odete, quanto ao dinheiro e à comida acabando. Não sabe o que fazer da vida. O vírus a está sufocando. Aperta mais a cada dia.
Se sobreviver à doença e à fome, voltará ao camelódromo, mas sem a cumplicidade risonha de Etelvino. E será que Odete estará junto na batalha do dia-a-dia? Será que terá saúde suficiente para sobreviver à profissão? No hospital já foram infectadas três colegas dela, uma morreu. Não fosse o salário magro de auxiliar de enfermagem de Odete, como pagar o aluguel e a prestação da moto? Sorte ela ter conseguido o emprego no mês passado. Lado bom da pandemia... Não fosse a peste, ia dar até para economizar um pouco e finalmente ir à praia no final do ano.
Descasca a banana, descarta a ponta estragada e come-a. Levanta-se, troca de calção e camiseta e vai à rua. A molecada está jogando bola no asfalto, quatro chinelos velhos simulando traves. Lá na pracinha eivada de mato ralo, os velhos jogam dominó nas mesas de concreto e uns malandros fumam e conversam. Que coisa! Será que não entendem? Nossa! O seu Hamilton está no dominó! Caramba, ele está contaminado, aquela mascarazinha não evita nada. Deveria ficar em casa.
Volta para dentro. Liga a TV. O noticiário parece ser o mesmo de ontem, de anteontem, de semanas atrás. Um médico explica que o número de casos cresce exponencialmente, que assim não haverá condições para o atendimento de todos nos hospitais. Um repórter tenta explicar o que é crescimento exponencial usando um gráfico e um desenho. É interrompido por um “Urgente, urgente!” seguido da notícia de que um cemitério da capital não está conseguindo sepultar os corpos no ritmo em que estão chegando. Mostra um hospital onde corpos estão sendo retirados em macas, levadas para veículos em fila. É o hospital em que Odete está trabalhando. Olha lá! É a Odete puxando o corpo da maca para o carro. Sem luvas! Meu Deus!
Conrado sente um baque, a respiração fica difícil. Vai à pia do banheiro, lava o rosto. Volta à sala e senta-se. Fecha os olhos e tenta normalizar a respiração. Demora.
Acende um cigarro, fuma. Pensa, revolta-se. Lembra do pronunciamento do presidente: “Não é nada, vai passar rápido e poucos vão morrer. É um sacrifício pequeno para que a vida continue, todos com seus empregos e salários.” Lembra de outra declaração dele: “Quem é forte resistirá. O brasileiro é forte. E além disso, o clima aqui é bom, não é como aquelas ´friagens´ nos estrangeiros.”
Na TV, agora, um técnico do governo é entrevistado. Fala, novamente, da importância do isolamento, de ficar em casa. Um político repete o bordão: “Primeiro a vida e a saúde e depois a economia”. Será que ele sabe que de fome também se morre? – pensa Conrado.
Desliga a TV, sai para o quintal esvaziar o cinzeiro. Volta, pega a bicicleta e sai pedalar, tentar espairecer. No caminho recebe a ligação de Odete. Ela diz que o seu teste deu positivo, mas foi escolhida para continuar, porque restam poucas auxiliares e o serviço está aumentando demais. Ela se sente bem. Estará num plano de permanência total no hospital, porque assim não contaminará ninguém de fora. Ela fala com firmeza e serenidade. Sempre assim: forte e decidida! Conrado sente que vai desfalecer, desmoronar.
Encosta a bicicleta escorando-a com um dos pedais na sarjeta. Senta-se. Coloca a cabeça sobre os joelhos. Fica assim por longos minutos. Depois levanta-se, pega a bicicleta e vai em direção ao hospital. Vai arrancar Odete de lá, nem que seja à força. No caminho é como se rodasse um filme em sua cabeça: Odete morre, ele sobrevive, a pandemia acaba, ele volta ao camelódromo, não há mais plano algum: viagem à praia, terminar de pagar a moto, financiar uma casa, terem um filho e uma filha...
No meio do caminho desiste da loucura, volta para casa, troca de roupa, vestindo a domingueira. Pega da caixa de sapato debaixo da cama o revólver que foi do pai policial, adepto do presidente, como ele, até poucos dia atrás. Coloca numa sacola de lona, pendura no pescoço, pega a moto e vai para o palácio. Sabe como se esgueirar até chegar à sala.
Horas depois está feito, bem feito. Conrado está de volta à sua casa. Liga a TV e nela só se fala no assunto que ele conhece mais que qualquer um: o assassinato do presidente negacionista.
Toma o resto de café da garrafa térmica, vai para o boteco e lá encontra o seu Hamilton, já bêbado e sem máscara. Conversam por mais de uma hora. Conrado come umas salsichas retiradas de um vidro com vinagre e pimenta. Volta para casa, liga a TV, deita no sofá e adormece ouvindo o noticiário sobre o crime que abala o país de futuro incerto, mais que o dele próprio. País agora livre de uma das tantas fontes de incerteza: aquele homem insensível e talvez com um parafuso a menos, que o povo elegeu cheio de ódio e raiva.
Odete liga depois das onze da noite. Pergunta se está tudo bem, se jantou. Ele mente, diz que sim, jantou e está bem; e pergunta como ela está. Ela diz que está cansada, mas bem, também.
No dia seguinte, Conrado acorda tarde, faz e toma café. Sem pão com margarina e sem banana. Liga para Odete, repete a conversa da noite: ambos “estão bem”. Sai de bicicleta, com a roupa do dia anterior, com a qual dormira. Chega à frente do hospital, para e encosta a bicicleta. Senta-se na sarjeta e fica observando o movimento. Quando vê Odete ajudando a carregar uma maca, se aproxima. Espera ela terminar o serviço, e a surpreende com um beijo longo e um abraço forte.
– Estou tentando ajudar as pessoas, vê? – diz Odete sorrindo. Mas não conseguimos com todos...
– Ontem eu ajudei, também, do meu jeito. Só vim te ver, cuide-se, já vou – diz Conrado, sorrindo. E sai pedalando de volta para casa.
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