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  • Foto do escritorValdemir Pires

O perfume de Marco Aurélio



Marco Aurélio Vero foi imperador romano de 161 a 180, pertencendo a família nobre, que cuidou com esmero de sua educação. Dividiu o poder com Lúcio Vero até este morrer, em 169; e a partir de 176 governou com seu filho, Cômodo, um dos quatorze que teve com a esposa, Faustina, a Jovem. Além de fazer filhos, cuidava com zelo e justiça, segundo consta, dos afazeres administrativos do Império. Por isso, e também por seus feitos militares (combateu as Guerras Marcomanas, de 166 a 180 e morreu em campo, de causas desconhecidas), é lembrado como um dos melhores governantes do Império Romano, sucedido pelo filho Cômodo (o que teria acontecido com os outros treze?). Curioso notar que este nome, Cômodo, remete a uma palavra (cômodo, conveniente, que oferece conforto) que bem se aplica, pelo que parece, historicamente, ao que se diz deste filho com que Marco Aurélio se decepcionou; enquanto Vero (filho do pretor Marco Ânio Vero), sobrenome do imperador, que foi um verdadeiro rei-filósofo, diz bastante a respeito dele: verdadeiro. Ele tentava ser. E desta tentativa resultou, além de muitos de seus atos, Meditações (aparentemente escrita entre 171 e 175), que contribuiu para o imortalizar, talvez mais que sua biografia política e militar. Afinal, o estoicismo, até hoje uma fonte de inspiração filosófica, deve a Marco Aurélio grande parte de sua força.


Que alguém tão poderoso possa ter escrito o que consta de Meditações é espantoso, principalmente quando se pensa em como são e se comportam os poderosos atuais, sejam eles do mundo político, do universo corporativo ou do ambiente cultural fermentado pelo show business ou pelas práticas dos digital influencers. Justiça, modéstia, gosto pela vida em seu mais simples teor existencial são temas de Marco Aurélio, a partir de uma percepção aguda de algo muito parecido com as vaidades das vaidades presente no Eclesiastes.


Os adeptos contemporâneos de um estoicismo de loja de conveniência filosófica vivem sacando da algibeira, como se fosse parte do legado de Marco Aurélio e Epitecto (os dois alicerces desta corrente do pensamento ocidental), papelotes com frases motivacionais convocando para a concentração da vida no presente (ou no momento), como única fonte dos prazeres possíveis à vida, que é curta; como se o mantra eficaz fosse “Curta a vida curta”. Não percebem que com isso dissipa-se por completo o perfume de Marco Aurélio.


Pobre Marco Aurélio, a tão pouco reduzido. Ele que tinha verdadeira noção da própria efemeridade e da efemeridade de tudo que há, houve ou haverá na face da Terra e além dela. Seu convite, inclusive a ele próprio e aos seus familiares, em meio às responsabilidades, dificuldades e desavenças da vida, não era certamente a um gozo máximo enquanto disponível (hedonismo contemporâneo que rebaixa até mesmo a mais rasa filosofia utilitarista e individualista inglesa, de fundo estritamente econômico). Seu convite, bem entendidas suas palavras, é a uma aceitação da vida, compreendendo-a como um quase nada, mas que é tudo à mão, para o indivíduo humano e para as comunidades que ele é capaz de formar.


De Marco Aurélio, “tempo é dinheiro” ou “dinheiro traz felicidade” são expressões que jamais poderiam ser derivadas. Tempo, em seu pensamento, não tem nada a ver com possibilidade de expansão, fonte de prazer ou de poder. Tempo é, sim, limitação, a maior e mais profunda limitação ao humano. A vida é um ponto, muito pequeno, na reta infinita para trás (passado) e para frente (futuro) da qual este ponto, quase invisível, faz (e logo deixará de fazer) parte. Razão suficiente para a modéstia, para evitar a vaidade. Motivo também para duvidar do poder: ele não alcança o passado nem o futuro – tudo que se faz é feito no presente, que passa rápido: o horizonte temporal do ser humano é fugaz como a “torção de uma broca”.


Também quanto ao experimentalismo novidadeiro que tentam colar hoje em dia ao estoicismo (de cada momento e lugar, e também de cada pessoa, extraia tudo, como quem respira e, assim, alimenta a vida; viva à caça de novas experiências como se não houvesse amanhã) é preciso dizer que passa longe de Marco Aurélio. Embora ele recomende: “Atento a cada coisa, pensa que ela já está se dissolvendo (...) nasceu como que para morrer” (dando isso a impressão de eterna renovação), ele também alerta para o fato de que tudo é eterna repetição, apenas mudam os que agem e reagem.


Um homem às voltas com a defesa e manutenção, mais do que de uma cidade (Roma) ou de um império (o vasto e complexo Império Romano), de um modo de vida (a latinidade em seu amálgama com o passado grego), Marco Aurélio não poderia ser mais claro, quanto ao seu posicionamento no que toca à vida em sociedade, à política: “O único fruto da vida sobre a terra é uma disposição piedosa e a prática do bem comum” e “uma só coisa é digna de valor: passar a vida com verdade e justiça”. É com estes “óculos” na cara que ele convida a dar toda “atenção ao presente”.


Verdade e justiça como valores máximos, disposição piedosa, prática do bem comum – peças do quebra-cabeça do que se entende por Bom, jamais bom só para mim. Bom, além disso, que não está dado, não é parte da natureza, resultando do desejo e da ação possíveis na vida breve de cada um, levado a cabo na relação com os outros.


Quanto à ação, impulsionada pelas necessidades ou pelos desejos, que não se exceda no tempo, em seu ritmo: “quando a coação das circunstâncias te deixar como que perturbado, retorna depressa a ti mesmo e não sai do ritmo além do necessário [não queira trazer o futuro para dentro do presente – não está a seu alcance], pois serás tanto mais senhor da harmonia ao regressar continuamente a ela. ”


Terá Marco Aurélio conseguido governar a própria vida baseando-se em “seu” estoicismo? Terá ele sido um imperador verdadeiramente estoico para os romanos? E o estoicismo, teria sido uma novidade nos primeiros séculos do cristianismo? Essa novidade, caso assim fosse, poderia adquirir permanência e chegar até nós, como possibilidade, no século XXI (embora, como acreditava Marco Aurélio, nada seja eterno)? É preciso pensar nisso, queira-se ou não adotar um estilo de vida verdadeiramente estoico.


O simples fato de as Meditações terem sido escritas por Marco Aurélio, e preservadas, é prova de que se, por um lado, não podemos e nem devemos ceder à tentação de viver senão o presente (inquestionável máxima estoica), por outro lado nunca deixamos de olhar para trás no tempo, como quando lemos este texto da Antiguidade. De fato, mesmo vivendo na intensidade do presente, não nos convém deixar de refletir sobre nosso passado (utilizando os textos vindos de eras anteriores) nem deixar de escrever para os que virão, pois sem isso, o presente que viveremos e eles viverão em nada será diferente daquele presente (um presente não-tempo, uma espécie de eternidade repetitiva) que vivem – enquanto nós homens permitirmos – as abelhas, as borboletas, as águias, os colibris, os golfinhos, as baleias, os elefantes, os tamanduás.


Mas será o perfume de Marco Aurélio ainda possível entre nós? As essências necessárias à sua obtenção ainda existem ou podem ser recuperadas?

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