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  • Foto do escritorValdemir Pires

Exaíphnes: o que de mágico há no tempo



Uma vida, por longa que seja, não é suficiente para esgotar o que se pode pensar a respeito do tempo. De fato muitas delas, brilhantes e diligentes, a isso se dedicaram, não chegando a mais que noções parciais, nenhuma consensual: Aristóteles, Platão, Santo Agostinho, Kant, Newton, Bergson, Einstein, Planck, Husserl, Heidegger,  podem ser citados, exemplos notáveis que são, nesta temática, considerando-se apenas a filosofia e a ciência ocidentais.


O tempo, dada a magia que o cerca desde sempre, nunca deixou de ser objeto da arte, nas mãos de poetas, romancistas, dramaturgos, pintores, escultores, músicos, fotógrafos e até cineastas; a mitologia, qualquer que seja, reserva-lhe especial atenção, na grega aparecendo como Chronos, Kairós e Aión, cada um insinuando aspectos que nunca ficam suficientemente claros de um ponto de vista estritamente racional; no campo teológico, dada a discussão sobre as origens, figura como essencial, remetendo a uma noção específica de eternidade inacessível senão por meio da fé.


Com sua natureza impositiva, incontrolável, a não ser para ser medido (com precisão crescente ao longo da História), o tempo é uma espécie de prisão, de que se foge somente com a morte (desaparecimento para os ateus, ingresso na eternidade ou não-tempo, para alguns credos). Por isso, com frequência deseja-se e tenta-se influenciar seu fluxo inexorável, congelando-o, acelerando-o, invertendo sua ordem (viagem no tempo) ou ignorando sua passagem, o que até agora não tem se revelado possível a não ser em ficções, imagens fotográficas (fixas ou em movimento) e experimentos científicos (estes, sob tantas restrições, que os resultados não podem ser considerados propriamente significativos para o que se entende quotidianamente como tempo).


Que o tempo é relativo, na Física e na Cosmologia, é hoje uma afirmativa amplamente aceita, não obstante não se possa compreender, através do senso comum, o que seja o tal “tecido” espaço-tempo de que se compõem a matéria no universo. Que ele não seja absoluto também do ponto de vista psicológico, é algo que se pode perceber intuitivamente, mas sem possibilidade de explicação científica, em equações matemáticas. Que em sonhos a cronologia não seja respeitada, as histórias se misturem, os relógios derretam, é um mistério completo, pois eles são produzidos na mesma mente que, de certa forma, inventou o tempo e o mede com precisão milimétrica.


Com a possibilidade de captação e de  posterior manipulação das imagens gravadas, desde o advento da fotografia e, depois, do cinema (com o acréscimo das atuais facilidades proporcionadas pelas técnicas digitais de gravação), uma ilusão convincente do “controle” do tempo é possível: congelamento (com o botão de pausa), retorno (com o botão de recuo), avanço (com o botão correspondente), aumento (time lapse) ou redução da velocidade (câmera lenta), além de modificações ou adulterações de elementos presentes nos quadros. Mas nada disso pode ser feito no presente, no momento, no instante – as imagens são sempre um passado recuperado.


Será possível de algum modo, manipular o tempo “real”, assim como nas imagens captadas dos eventos? Concretamente falando, a resposta a esta pergunta é um convincente não. Mas a magia do tempo não aceita limitações. Pelas vias da memória e da imaginação (já descontados os sonhos que são sonhados dormindo e as alucinações, “naturais” ou induzidas por psicotrópicos e entorpecentes), às vezes o tempo é apartado de sua tirania – este vir do passado, passar pelo presente, seguir em direção ao futuro e ao fim, em ritmo único e inalterável. Quando e como isso acontece? Há relatos e registros de fatos sobre isso e possivelmente todos, uma vez ou outra na vida, já passaram por algo dessa natureza (ou “inatureza”). É muito difícil enfrentar a discussão sobre esses fenômenos, que se assemelham a conversas com mortos ou o que o valha. De qualquer modo, sempre se tratará de ocorridos no âmbito do espírito ou da alma – não é a partir dessas “entidades” que se recupera a memória e se alcança imaginação, quando se considera que apenas a mente ou, menos ainda, o cérebro não são suficientes para recorrer quando a razão não basta? É de magia, literalmente, que se trata – ela faz parte da vida. Não magia manipulável, acessível ao mágico, porém: Magia que a Natureza, a Vida, em diálogo intraduzível com mais íntimo da Arte torna acessível: epifania, revelação.


A esta altura, vale recuperar uma imagem (não conceito) do tempo, que Fernando Rey Puente, trabalha no seu ensaio O súbito (exaíphnes) em Platão. A expressão grega “cola” bem em nossas palavras súbito e repentino e se aplica adequadamente ao que emerge de repente, surge inesperadamente, eclode imprevisivelmente. Puente especula sobre os usos trivial e filosófico de exaíphnes em Platão, dialogando com dois famosos exegetas. Não posso tomar esta trilha, por não possuir os calçados necessários nem ter fôlego suficiente. Quero simplesmente brincar um pouco e, por isso, digo que exaíphnes abre uma bela brecha para relacionar tempo e eternidade (o que não passa despercebido de Puentes). Vou além, afirmo que exaíphnes é uma espécie de “buraco de minhoca” (expressão utilizada pelos físicos) filosófico que permite trafegar do tempo para a eternidade. Pois não é de súbito, repentimamente, “do nada”, que se tem uma revelação que se dá de cara com uma epifania? Os artistas não se cansam de afirmar isso, da mesma forma os mais genuínos religiosos.


A eternidade é o não-tempo (“lugar” onde o relógio não tem ponteiros e os calendários perdem qualquer significado), enquanto o tempo (imagem móvel da eternidade, segundo Platão) é o “lugar” em que o presente engole o passado, que é engolido pelo futuro, os três momentos do tempo virando nada no buraco negro da matéria. Exaíphnes enseja uma entrada (mais do que uma simples sensação) na eternidade, permanecendo-se, todavia, no tempo: é o tempo do êxtase, inclusive sexual – manifesta-se no ato biológico em que os que vão morrer asseguram sua permanência, projetam-se para além de si, avançam no tempo sem dele sair. Exaíphneé o tempo-ponte entre o eterno e o efêmero; é o elemento mágico do tempo, totalmente inabordável pelo conhecimento humano baseado na razão, tangenciável pela arte, vislumbrável pela fé.


Exaíphnes, ao contrário do que pode parecer, não se dá a quem não o esteja procurando, na incerteza e na dúvida. Apesar de súbito, presta tributo ao que antes a ele se ligou, na fronteira nebulosa entre razão e sentimento.

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