top of page

O desafio educacional brasileiro

Imagem: Wix
Imagem: Wix

O desafio educacional brasileiro é um assunto delicado. Primeiro porque parece não haver um desafio, mas vários e imbricados entre si; e é difícil saber qual deles é o mais grave ou se há um ou dois cuja solução facilitaria resolver os outros. Segundo, porque no país a educação parece ser um desafio desde que existe, começando pela ação dos jesuítas no período colonial e chegando à atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação em sua insuficiente materialização. Não é à toa que “O desafio educacional brasileiro” deve ser um dos títulos de texto mais banais da nossa História.

 

Além disso, a situação se complicou do final do século XX ao começo do século XXI, com a revolução da informática, das comunicações, das tecnologias da informação e, agora, como o avanço acelerado da chamada inteligência artificial.

 

Para se ter uma exata noção da profundidade do poço em que está mergulhada a educação pré-universitária no Brasil (abstraindo, nesta reflexão, o caso, também grave, do ensino superior) é preciso começar com um exercício empírico, ir a campo: acompanhar, anonimamente, o funcionamento de uma escola pública durante um ou dois dias, mantendo atento o olhar para ver com clareza estrutura física/material, equipamentos, lógicas, comportamentos e atitudes dos atores envolvidos (alunos, professores, diretores e outros gestores, funcionários, pais, vizinhança). Isto porque este procedimento será uma “vacina” contra a enorme “discurseira” em que se constituem as análises, avaliações e propostas para a melhoria do ensino no Brasil; este procedimento levará à percepção de que há muita gente propondo “turbinar” (colocar modernas e potentes turbinas) num avião do tipo 14-Bis: ainda bem que não é possível, por que se fosse, em vez de o voo raso se manter, ridiculamente, ocorreria um grande desastre.

 

Embora se tenha a impressão (e tantas vezes se diga) que o atraso educacional brasileiro se deve à fraca adoção de tecnologias (o que de fato acontece, a maioria das escolas funcionando ainda à base de “giz e cuspe”, com poucos computadores e às vezes sem acesso à internet, em salas de aula com carteiras onde os alunos se sentam, inquietos, desatentos, para ouvir o professor ou para trabalhar com cadernos e lápis/caneta), o “buraco é mais embaixo”. Os problemas que impedem as escola, principalmente as públicas, de “entregar” o que delas se espera, já existem antes do avanço tecnológico que hoje exige completa remodelação do ambiente e das práticas educacionais. Eles têm a ver com o que se entende que deva ser a “entrega” a que a escola deve se obrigar. Infelizmente, a mentalidade do “canudo” (certificação) ainda é muito forte, impossibilitando que alunos e suas famílias pressionem por mais do que isso. Não bastasse esta concepção, o certificado desejado é, ainda, limitante: um papel para facilitar a empregabilidade. Pior: o que se tem em mente, na busca do “papel mágico”, é melhor remuneração e não realização profissional, por exemplo (bastando que a remuneração seja um pouco melhor do que o salário mínimo, para a maioria – ambição miúda). Ainda não se deu o salto de ver a escola para além de um lugar de sacrifícios para deixar o trabalho braçal (típico da roça) e conseguir emprego burocrático (“no escritório”). Talvez uma análise do andamento de uma disciplina como “Projeto de vida”, adotada na rede de ensino pública paulista, seja reveladora a este respeito. Dia desses, uma professora relatou que, perguntando a um aluno em fase final do ensino médio o que ele mais desejava para sua vida, dele obteve esta resposta: “Quero ter uma ´motinha´, porque eu gosto de acelerar e posso ganhar dinheiro fazendo entregas.” Talvez este tipo de resposta seja muito representativa e, assim sendo, obriga a perguntar: “Então, qual o papel dos estudos e da escola nos ´projetos de vida´?"

 

Quanto aos pais, na sua imensa maioria portadores de uma educação formal precária, não nutrem expectativa de que os filhos obtenham mais do que isso, lamentando ao observar que as escolas que meninos e meninas estão frequentando parecem disponibilizar ainda menos, e que seus filhos, absorvidos pelos seus aparelhos celulares (obtidos a duras penas, pois são caros), não absorvem nem o pouco que é oferecido pela escola. Um terrível círculo vicioso, que parece impossível romper. Agora, com o Programa Pé de Meia, o sonho da “motinha” e, em muitos casos, de um celular mais potente... nada disso mudará.

 

O desânimo, quando não o adoecimento ou a busca de outra atividade profissional para não adoecer, tem atingido crescente parcela dos professores, liquidando vocações e anulando esforços bem-intencionados (nem sempre adequados, ainda por cima). Diretores encontram imensa dificuldade para liderar suas equipes educacionais, constituída em boa parte de “desviados”: formados em Humanas ensinando Exatas, ex-bancários (por exemplo) que o desemprego empurrou para as escolas, sem vocação nem preparo etc. Isso quando os diretores têm competência para liderar, o que nem sempre o processo ruim utilizado para sua designação assegura.

 

Quanto aos conteúdos a trabalhar nas aulas e atividades pedagógicas, merecem reflexão à parte, que não cabe aqui, mas salta aos olhos que carecem de uma conexão bem urdida com os desafios da nova sociedade do conhecimento/da informação (que, inclusive, não oferece empregos aos indivíduos desprovidas de um mínimo de habilidades intelectuais), conexão esta que deve partir de um patamar caracterizado por uma massa de alunos economicamente carentes, socialmente marginalizados, culturalmente disputados – via indústria cultural e, agora, via redes sociais – por vertentes não emancipatórias.

 

 

Seria possível prosseguir, ampliando a percepção do fundo do poço educacional do Brasil. Mas isso é doloroso e desalentador demais – é preciso realizar esta tarefa aos poucos. Então, é o caso de ir direto à pergunta, neste momento: O que fazer? Pergunta que faz parecer miúda a que deu início a esta reflexão: quais são os desafios da educação?

 

Primeiro: não abandonar jamais a tentativa de mapeamento dos desafios educacionais do país, e não deixar de buscar maneiras de enfrentá-los com alguma possibilidade de sucesso. Seria um "luxo" caro demais para o futuro do país e de seu povo.

 

Segundo: na elaboração de diagnósticos e prognósticos, partir sempre (e retornar em seguida) do locus fundamental da educação: a escola – o prédio em que, diariamente, professores e estudantes se engajam num esforço de crescimento mútuo para melhorarem a si (no que tange ao conhecimento, à sensibilidade e à cidadania) e contribuir para melhorar o mundo.

 

Terceiro: encontrar um modo de, na formulação e na implementação de políticas (gerais e locais), manter reais pontes escola-família (e que não sejam “associações de pais e mestres”... ou conselhos “para inglês ouvir” enquanto se fala português e sem correção gramatical), pois sem isso o “diálogo” entre surdos que tem caracterizado esta relação continuará contribuindo para não se chegar a lugar nenhum ou a lugar pior que o de partida.

 

Quarto: no quotidiano escolar, obter envolvimento dos alunos na compreensão do que são a vida e o ambiente escolares, para que deixem de ser tomados como momento e espaço de “transmissão” de professores (ativos) para estudantes (passivos) no manejo do conhecimento, pois somente assim se poderá ensinar-aprender sem jogar toda a responsabilidade pelo resultado nas costas dos professores, principalmente quando se abre mão de processos avaliativos tradicionais (cobranças),  como tem acontecido, sem colocar em seu lugar qualquer outro instrumento que leve os alunos a ser responsabilizarem (com isso aprendendo a ter responsabilidade, também, na vida) pela sua parte no processo.

 

Quinto: na luta sindical dos professores (necessária como nunca), que não se limitem a discutir e pleitear salários (deixando outros temas como “penduricalhos”), mas condições de trabalho (especialmente cargas horárias que não sejam mortais, para obter a remuneração básica; e exercício em única escola, sem mudanças a cada ano, tendo que enfrentar processos aleatórios de atribuição de aulas também aleatórias) e boas políticas educacionais (bem concebidas, dialogadas e dotadas de condições para materialização).

 

Sexto: que nos níveis estratégicos, táticos e operacionais da política educacional não se perca de vista que a educação continua sendo, aliás tornou-se ainda mais, uma variável estratégica para o desenvolvimento socioeconômico de qualquer país; e que grande parte dos desafios que ela enfrenta originam-se não na escola ou no sistema educacional, mas na sociedade como um todo - aliás sua natureza e objetivos são objeto de disputa, inclusive ideológica.


Enquanto a educação, como anunciada prioridade governamental, se limitar à garantia constitucional de um mínimo de gastos orçamentários anuais (nem sempre bem destinados) e a uma “discurseira” planificadora/burocrática que não chega ao coração do menino-estudante que não almeja nem passará a almejar mais do que uma “motinha” para se tornar entregador de pizzas, nem chega à mente e aos braços do professor que vive um corre-corre da manhã à noite, de uma escola à outra, precisando de mais horas-aulas para bancar o combustível do carro e pagar a prestação da dívida contraída na aquisição do veículo, enquanto isso ela, a educação, continuará sendo um desperdício, de recursos financeiros e, sobretudo, de talentos colhidos, uns (estudantes) por miúdos alentos, e, por outros (professores) por crescente desalento. Algo tem que ser feito, urgentemente. É fato que há muita gente tentando. Mas ao que parece, os tiros estão indo em  muitas direções, a maioria, ao que parece, não atingindo alvos e, às vezes, até saindo pela culatra.

2 Comments

Rated 0 out of 5 stars.
No ratings yet

Add a rating
Z Hum
Z Hum
Apr 07
Rated 5 out of 5 stars.

Análise lúcida dos múltiplos desafios educacionais brasileiros, propondo soluções práticas além da retórica e das limitações tecnológicas.


Como transformar a mentalidade do "canudo" em aspirações mais amplas de desenvolvimento pessoal?[AllFreeNovel]

Like
Valdemir Pires
Valdemir Pires
Apr 10
Replying to

Essa transformação pressupõe uma mentalidade que não aspire facilidades, como as que são "oferecidas" pelas instituições de ensino interessadas não em estudantes, mas em alunos/matrículas e, portanto, receitas. Mas o nó é complicado e pais, alunos, escolas, gestores estão todos sem saber o rumo a tomar, a não ser aqueles que lucram com o atual estado de coisas. Estas afirmativas são simplistas, certamente, e não apontam saídas. Encontrá-las é tarefa para toda a sociedade.

Like
bottom of page