A política está de mãos amarradas. Quanto mais impotente se sente, mais ela grita, o ódio tomando conta de todo seu corpo. Quem capturou e manietou a política? A economia. A economia mercantil capitalista de alta performance, globalizada e financeirizada.
Uma fração do poder nunca deixou de ter natureza econômica e financeira: dinheiro sempre proporcionou ou comprou poder. Mas na fase atual das relações socioeconômicas, em todo o mundo, não é exagero dizer que a proporção se inverteu: agora é a política que mendiga um pouco do poder que a economia mantém sob seu controle.
Para entender como isso aconteceu é preciso perceber o que ocorreu com a política econômica nas últimas cinco décadas, período em que se aprofundou e amadureceu sua impotência hoje notória.
A política econômica pode ser definida como o uso do poder estatal para interferir no rumo e no ritmo da atividade econômica. Originalmente ela se desdobrava em política monetária, política cambial e política fiscal. Basicamente, manejando a taxa de juros, a taxa de câmbio e o orçamento público, os governos procuravam manter a moeda estável (evitando inflação), assegurar um nível de atividades o mais próximo possível do pleno emprego (pressionando o desemprego para baixo), e garantir um fluxo favorável de comércio e de transações financeiras internacionais (balança comercial e balanço de pagamentos superavitários).
A política econômica sempre foi encarada e praticada de um ponto de vista liberal, ou seja, consistia e consiste em um instrumento do governo para auxiliar – nunca para substituir – o mercado, entendido como forma por excelência de organização da vida econômica, ao sabor da lei da oferta e da procura e assegurados os valores concernentes à liberdade individual (geral e de empreendimento) e à propriedade privada.
Isso quer dizer que a política econômica nunca foi aceita sem restrições. Os governos sempre foram pressionados a intervir o mínimo possível porque, afinal de contas, quando o poder (a política) entra em jogo, beneficia este prejudicando aquele, não com base em critérios técnicos, isentos e neutros (fundado na teoria econômica do livre mercado). Por exemplo: quando o governo eleva a taxa de juros para conter a inflação (diz ele), beneficia o rentista e prejudica o empreendedor produtivo, favorece o ofertante de empréstimos e dificulta a vida do tomador de crédito; a teoria econômica “pura” (sem intervenção do governo) recomenda que a taxa de juros suba ou desça conforme a lei da oferta e procura de/por empréstimos, considerando que a participação do governo distorce a relação econômica “natural” entre agentes econômicos com dinheiro para emprestar e agentes econômicos que precisam de recursos alheios para consumir ou investir.
Ocorre que, atualmente, com o triunfo do neoliberalismo (nome suave para o que é, de fato, ultraliberalismo), “o mercado” deixou de apenas “torcer o nariz” para a política econômica. “O mercado” (leia-se, o conjunto de agentes econômicos que dominam o sistema e os mecanismos essenciais da economia capitalista – e não o conjunto de agentes econômicos em competição entre si sob a regra neutra da lei da oferta e da procura) foi muito além: ele travou a política econômica, praticamente impedindo os governos de intervir na economia. Como? Limitando ao extremo o uso das políticas monetária, cambial e fiscal.
A política monetária atua sobre o volume de moeda e crédito na economia. Deixado ao sabor do mercado, estritamente, esse volume cresce ou diminui conforme a oferta de dinheiro e a demanda por ele, o Banco Central (BC) sendo o agente extra-mercado que modifica esta realidade, implementador que é da política monetária, forçando “artificialmente” (desprezando a lei da oferta e da procura) a taxa de juros para cima ou para baixo, conforme suas decisões políticas. Antes do predomínio da lógica ultraliberal, o BC era um órgão praticamente “do governo”. Portanto a taxa de juros e o volume de dinheiro (incluindo emissões de novas cédulas) era politicamente determinada, às vezes contra o que pretendia o mercado financeiro privado. A ideia vitoriosa de BC independente açambarcou esse poder das mãos dos políticos, colocando a taxa básica de juros da economia sob guarda de agentes “neutros”, considerados, desde então, os guardiões do valor da moeda, buscando evitar sua corrosão pela inflação. Se o governo quiser gastar demais, hoje, leva uma pancada do BC "independente": a taxa de juros sobe, para, afirma-se, evitar a inflação decorrente da elevação rápida de gastos (públicos) sem aumento correspondente de produção ou da carga tributária.
Antes de isso ter acontecido com a política monetária, “o mercado” já havia inviabilizado a atuação governamental nas transações cambiais. O governo que, antes, definia a taxa de câmbio (dizia, por exemplo: “Aqui no Brasil, um dólar americano compra dois reais e trinta centavos) teve que ceder para as chamadas “bancas cambiais” e passar a dizer, humildemente: “Aqui no Brasil, o preço do dólar varia de acordo com a lei da oferta e da procura, mas não pode ser inferior a dois reais nem superior a três reais”. Até que chegou, sem demora, o dia em que a política cambial desapareceu: o dólar vale quanto “o mercado” decidir, em tese ao sabor da lei da oferta e da procura por moeda globalmente aceita para transações internacionais.
O momento atual corresponde ao da luta entre o Estado e “o mercado” para definir o destino da política fiscal. Esta política é, por natureza, a mais política de todas, ou seja, a menos enquadrável pela teoria estritamente econômica. O fato é que o Estado, para existir, tem que ter um orçamento. As receitas deste orçamento não são auferidas através dos mecanismos mercantis: o governo não produz e vende mercadorias para se sustentar; ele “manda” as pessoas pagarem tributos e elas têm que obedecer. Depois, de posse dos recursos auferidos a partir do poder, o governo realiza gastos conforme as suas decisões, sempre beneficiando uns e desconsiderando outros. Ao fazê-lo, termina redistribuindo renda, com justiça ou não. À revelia do mercado. E sempre sob gritaria deste e de todos que não se sentem contemplados ou se sentem prejudicados.
Bem, mesmo esta política que é política na sua essência, está sendo capturada pelo mercado, por meio do endividamento público. Ocorre que os governos, no mundo todo, carregam dívidas públicas crescentes. Elas não são liquidadas, mas roladas, ou seja, mês após mês, ano após ano, os governos tomam dinheiro emprestado no mercado financeiro para pagar não seus gastos correntes ou de investimento, mas sim as prestações das suas dívidas (cada vez maiores), que são compostas dos juros remuneratórios crescentes e das amortizações declinantes do principal emprestado (de modo que mesmo pagando cada vez mais, as dívidas públicas crescem). Sob o argumento de que os governos oferecem riscos crescente aos seus credores, ou seja, dão indícios de que terão dificuldades para pagar o que devem, “o mercado” pressiona para que a taxa de juros dos empréstimos aos governos subam e, adicionalmente, os denunciam ao público como gastadores irresponsáveis, clamando para que passem a economizar (gastar menos do que arrecadam, sustentar superávits fiscais). Forçando assim, cortes de gastos públicos, mormente os de cunho social.
Já não existe, portanto, política econômica. Elas são uma sombra daquilo que há na teoria a respeito do papel do Estado na economia. Restam, depois desta subtração de poder econômico do Estado, governos incapazes de atender à grita por investimentos públicos – sociais, em infraestrutura etc. – numa economia com uma massa crescente de aposentados, de desempregados, de miseráveis, convivendo com super-ricos que, além de nadarem de braçada nos mercados financeiros, dominam segmentos de mercado que há muito deixaram de ser o paradisíaco reino da concorrência, do livre funcionamento da lei da oferta e da procura, fundamento, aliás, das justificativas para amarrar as mãos do Estado na implementação da política econômica.
Há muito já passou o tempo de redefinir sabiamente o que se entende por mercado (reino da economia) e por Estado/governo (reino da política) e de se estabelecer entre eles um novo tipo de relacionamento, conducente, ao mesmo tempo, à eficiência econômica e a um mínimo de justiça social – necessariamente com melhor distribuição da riqueza e maior valorização da política (para que não deixe de ser democrática). Parece que pacificamente isso não vai ocorrer: daí deriva o ódio que está engolindo as práticas políticas, que apontam não para uma revolução transformadora, mas para um retrocesso civilizatório.
Pessimismo de economista anti-ultraliberalismo? Que cada um dê a sua resposta. Que cada um, seja qual for a resposta que dê, pelo menos pense em que futuro temos diante de nós com a economia funcionando como atualmente funciona, a política totalmente subordinada a ela, como está, os governos fazendo de conta que contam.
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