(Publicado também no Diário do Engenho)
Não pela primeira vez – nem será a última – o mundo passa por uma situação generalizada de descrença no futuro, angustiante e desmobilizadora. O noticiário e, com o advento das redes sociais, o amontoado de interações textuais e imagéticas, se apresentam eivados de queixas, reclamações, lamentos, lamúrias, com a repetição exasperante de bordões pessimistas (“Vem, meteoro!”) ou, no extremo oposto, de receitas redentoras formuladas por religiosos ou influenciadores que brotam diariamente, aos milhares, no ambiente virtual da internet.
O aparente caos generalizado – devastação ambiental, catástrofes climáticas, doenças e epidemias, guerras, violência urbana, desentendimentos interpessoais e familiares por motivos torpes, confronto de projetos de poder oportunistas dilapidando as democracias e pavimentando o trajeto para governos autoritários e irresponsáveis – cai sobre os ombros de todos diariamente, mesmo de quem procura se esconder tentando, em vão, fechar os olhos para os acontecimentos, cada vez mais dramáticos, beirando ao absurdo, o ilógico, o profundamente contraditório.
Na contraposição à onda de desmoronamento, surgem ideias, sugestões, propostas, teses, soluções, enfim, que os potenciais afogados acabam agarrando como tábua de salvação. Mas que, na maioria das vezes, se revelam como chumbo atado á canela de quem está tentando manter-se à superfície. Coisas como: “Confie, Jesus te ama!” ou “Liberte o empreendedor que está nas suas veias!”, e assemelhados, geralmente fiapos de filosofias mal compreendidas, vendidas como bem explicadas.
E o sujeito fica perdido. Em meio à tempestade: com seu frágil barquinho, tenta agarrar-se ao primeiro indício de socorro. Pode, por acaso, comportar-se de outro modo?
Quem tentar responder esta pergunta corre o risco de ser mais um ofertante no mercado de ilusões. Mais simples, e talvez mais honesto, seria dizer: “Não sei não, a coisa tá feia, mesmo, vá procurando, aí, o seu jeito.”
Se há algo que se pode dizer, em tal contexto, é que para problemas coletivos não há soluções individuais. Definitivamente, não há. As soluções individuais adotadas face aos problemas coletivos geralmente têm o efeito de agravá-los.
Todavia, soluções não brotam de um coletivo (mero conjunto de indivíduos). Elas têm que partir de alguém ou de alguns. E aí a questão passa a ser: quem serão esses?
Não dá para dar nomes. Mas é possível imaginar perfis. Aqueles de onde virão as soluções são pessoas capazes de se apaixonar, de cultivar em si vocações e talentos, capacidades e habilidades, como um jardineiro fiel – só aparentemente fiel ao jardim e às flores, pois essencialmente fiel à beleza. Aqueles prontos para atender ao apelo de Baudelaire:
Deve- se estar sempre bêbado. É a única questão.
A fim de não se sentir o fardo horrível do tempo,
que parte tuas espáduas e te dobra sobre a terra.
É preciso te embriagares sem trégua.
Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude?
A teu gosto, mas embriaga-te.
Não é possível viver sem alguma embriaguez em tempos tão turbulentos. Prova? O enorme alcance das religiões e seitas mundo afora, assim como a amplitude do mercado de entorpecentes, legais e ilegais.
Então, cuidado! É preciso bem escolher aquilo com que se embriagar. Que tal algo que, ao passo que fortaleça a condição individual, responda à necessidade de que cada indivíduo participe do todo, do coletivo, a ele legando algo seu, zelosamente produzido e amorosamente oferecido? Talvez isso possa ser feito juntando o Charles Baudelaire (1821-1867) do poema acima (Embriaga-te) ao Ray Bradbury (1920-2012) de Fahrenheit 451 (1953), na passagem em que se lê:
Quando morrer, todo mundo deve deixar algo, dizia meu avô. Um filho, um livro, um quadro, uma casa, uma parede levantada ou um par de sapatos. Ou um jardim cultivado. Algo que sua mão tocará de um modo especial [de modo embriagado, apaixonado], de maneira que sua alma tenha algum lugar aonde ir quando morrer, e quando as pessoas olharem esta árvore ou essa flor, que você plantou, você ali estará. Não importa o que você faça – dizia – desde que mude algo em que toque, fazendo com que seja como você depois de afastar as suas mãos que ali operaram, transformando. A diferença entre o homem que se limita a cortar a grama e um autêntico jardineiro está no tato. O cortador de grama existe como alguém que estando ali ou não, não faria diferença. O jardineiro estará ali para sempre.
Outro cuidado: não querer ser o jardineiro por inveja ou por imitação de outros (que, aliás, podem não passar de cortadores de grama escondendo sua verdadeira condição). E aí, é como recomenda Fernando Pessoa (1888-1935), em Segue o teu destino:
Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.
Mas qual o seu destino? Procura-o, ele não está dentro de você, nem na multidão que o rodeia. Ele está em um lugar em que esses mundos se cruzam e se tocam, com a suavidade possível. É este lugar que precisa ser encontrado e ocupado por cada um que queira, genuinamente, passar pela vida, pelo mundo, com a sensação de valer a pena.
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