
Li, certa vez, que Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) incomodava-se com o fato de “pedra no caminho” ser a expressão pela qual mais era lembrado, enquanto poeta.
– Drummond?
– Sim, Drummond, aquele mineiro da “pedra no caminho”.
Ele, um POETA, maiúsculo, colocado, assim, praticamente debaixo da pedra?! E de uma pedra que ele pôs no caminho em 1928, quando ele tinha vinte e poucos anos. Se bem que boa parte da culpa é dele mesmo. Basta ver o quanto ele enfatizou o fragmento de rocha (ou pelota de argila, sei lá!) num dos seus mais célebres poemas, No meio do caminho:
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca li ou ouvi afirmarem que Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) alguma vez se incomodou com ser mais lembrado pela sua afirmativa de que “Deus está morto” (seção 108 de A Gaia Ciência [de 1882], intitulada Novas lutas; seção 125, intitulada O louco; seção 343, intitulada "Sentido da nossa alegria"). Mas teria tido razão se tivesse reclamado. Ele, um FILÓSOFO, maiúsculo, condenado, assim, pelo assassinato da divindade?! Se bem que boa da culpa é dele mesmo. Basta ver com que capricho ele lavrou a certidão de óbito do Deus cristão. Muito embora estivesse querendo mais esclarecer a natureza da modernidade, recomendando novas posturas, do que querendo defender o ateísmo (que ele de fato, entretanto, defende como ninguém).
Mas Nietzche não deveria ser condenado, como foi e é, por uma tentativa de deicídio, com palavras apunhalantes de sicário ensandecido. Afinal, ele só emitiu a certidão da morte de Deus; sequer o laudo de autópsia. Até porque, até hoje não foi encontrado o médico legista do caso em questão...
O que faz suspeitar que Deus continua vivo.
Talvez seja porque ao morrer um deus ou Deus (O DEUS, único), de seus restos nascem outro ou outros. Para assim concluir, basta dar uma passagem de olhos pela história dos mitos e das religiões que atravessa a História; e proceder a uma mínima reflexão acerca o impacto da fé na vida humana, individual e coletiva, ontem, hoje e, provavelmente, amanhã. Recuos na pré-história farão supor que havia crenças em algo acima do humano desde os primórdios da consciência e dos rabiscos em rochas e cavernas; sumérios e babilônios, assim como egípcios, lá no alvorecer da civilização, concebiam deuses e deles se socorriam, inclusive para o exercício do poder; gregos, judeus e romanos, também lançaram mão de divindades para explicar o mundo e a si mesmos; judaísmo, cristianismo e islamismo não são, desde há muito e até hoje, apenas nomes dados a simplórias ideias abstratas de seres dotados de força supra-humana e dominadora – são expressões da existência de Deus.
Mas existência entendida não como materialidade. Mesmo no caso de Jesus Cristo (0-33), um homem-Deus, nascido de uma mulher (Maria), à morte sucedeu a ressurreição, com o corpo tendo “subido aos céus” e nunca mais sendo encontrado, a não ser pelos que já morreram e tiveram seus pecados perdoados, e que podem vê-lo “sentado à direita de Deus Pai”. Existência, sim, como parte imaterial alicerçante de uma ideia e de uma concepção de vida e de mundo
[Acredite quem quiser; e minha esposa é testemunha (não de Jeová). Neste ponto da escrita deste texto – 9h19min do dia 26/10/2020) – fui interrompido por batidas no portão metálico de casa (apesar de haver campainha). Eu fui atender e, depois de verificar pelo olho mágico (não há câmara), sem abrir o portão, disse: “Pois não!” e responderam que desejavam falar comigo. Perguntei sobre o que e a resposta foi: “Sobre a Bíblia”. (Fecha colchetes)]
Retomando: Existência, sim, como fundamento de uma ideia e de uma concepção de vida e de mundo que comporta, necessariamente, a transcendentalidade, como parte inseparável da materialidade, esta, vivida e compreendida, pela imensa maioria dos seres humanos (ondem, hoje e provavelmente sempre) como insuficiente: a vida terrena não basta; tal como é, não faz sentido. Existência da divindade e de um mundo além-túmulo, portanto, como esteio (metafísico) necessário para suportar e para conduzir a existência humana material, terrena. E, além disso, para explicar o inexplicável (ou cientificamente explicado sem que se chegue a uma teoria consensual): o surgimento – por mais que se aceite uma “evolução”, falta dizer, com certeza e segurança, desde quando e de que forma, a partir do quê – qual o ponto zero e como foi dado o ponta-pé inicial (t1). E dá-lhe, nesse tocante, cosmogonias e cosmogonias, dogmáticas ou simplesmente poéticas! a desafiarem, sem parar, a Cosmologia titubeante.
[São 9h47min., agora. Acho que vou chamar de volta a senhora e a jovem que há pouco queriam me falar sobre a Bíblia (ouço-as conversando com o vizinho do lado – um que ainda não “se matou de solidão” porque “que ninguém lhe queria, abrir as portas do coração” – Vinícius de Moraes). Vou perguntar-lhes se as palavras que acabo de alinhavar, aqui, neste texto inútil, não são uma pedra no caminho delas para, como ofereceram à minha negação para ouvi-las hoje (“Estou ocupado, agora”), me falar (catequizar, converter) outro dia.]
Comments