A moldura não pode receber maior atenção que a pintura, a não ser que o observador seja o profissional encarregado de emoldurar, tarefa que implica a inerente humildade do que é acessório e não o essencial. Nas relações interpessoais, e também nas sociais, todavia, a moldura (ou o estereótipo) acaba muitas vezes ocupando o lugar da pintura.
Uma pessoa é como se fosse uma pintura: para captar sua essência, aquilo que ela é e significa, é necessário observá-la atentamente, permitir que ela se revele em suas variadas facetas, por meio das falas, manifestações, posicionamentos, gestos, atitudes, comportamentos. Mas em geral, toma-se de cada um algo que é mais visível, notório, e comparável aos demais, enfiando aquele que é observado ou analisado no balaio dos gatos pardos, pretos, laranjas ou frajolas. Sem chance, inclusive, de serem vistos como cachorros, leões, pardais ou elefantes. Fixa-se a moldura e a pintura se torna detalhe a que não se dá atenção.
Este procedimento é um tanto “natural”, sendo afastado poucas vezes na vida de qualquer um. Inclusive quando se trata de relações afetivas profundas, como as que se estabelecem entre casais, pais e filhos, irmãos, grandes amigos. Na vida social e profissional, por exemplo, este modo de um avaliar o outro é predominante, assim como na política. Tudo se dá como se a pessoa real fosse uma espécie de personagem plano, aquele que, numa novela ou romance, representa um tipo específico de comportamento, jamais se afastando das características inerentes àquele padrão: se é arrivista, o é do nascimento à morte; se é fundamentalista, jamais se depara com questionamentos aos seus valores; se é revolucionário ou reacionário, tudo que faz está de acordo com o receituário padrão.
A outra face dessa moeda desgastada pelo uso – avaliar o outro pela moldura e não pela composição e cores da pintura – se revela na definição da personalidade: cada qual vai em busca de se enquadrar numa moldura escolhida, em vez de procurar constituir-se, antes, como pintura. Enquadrar-se em branco, antes de cobrir-se das próprias imagens e cores.
Nesse evoluir pelas bordas vão se erguendo os tribunais repletos de juízes incapazes de avaliar a si mesmos, mas posicionando-se como provedores dos critérios e padrões que devem nortear os demais.
Há pinturas que não cabem nas molduras: pessoas que sofrerão toda a vida pela sua inadequação; assim como há pinturas que transbordam das molduras, parecendo invadir os arredores, deliciando ou molestando os demais, conforme seja aceita ou rejeitada a sua “invasão”.
E há os artistas, que sabem a diferença entre a moldura e a pintura, entendem o papel de cada uma delas, e conseguem combinar uma e outra com talento e graça. Estes não são encontrados em cada esquina, mas, por incrível que pareça, existem. Ver, ouvir ou ler um deles é de uma alegria tão profunda que o expectador, ouvinte ou leitor se sente transportado ao paraíso.
Não sei se me entendem. Só sei que é assim. Para mim, pelo menos.
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