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Aula

Foto do escritor: Valdemir PiresValdemir Pires



Aula. Esta palavra me foi tão familiar por três décadas, tão parte de mim, professor por vocação, na universidade, desde muito jovem, que eu nunca tinha pensado nela assim, pronunciando-a vagarosamente (aaa-uu-la) e sentindo seu sabor: os lábios se abrem e se projetam levemente para a frente (“a”), fecham-se em discreto beiço (u) e se reabrem retraindo-se um pouco (la).

 

Bonita palavra. Musical. Tanto que aulo (como se fosse seu masculino) é um tipo de oboé duplo de que se utilizavam os romanos, e também um nome genérico para diversos tipos de flauta entre os gregos antigos. [Como nome próprio, entretanto, Aulo Vitélio Germânico (15-69 d.C.), imperador romano por ínfimos oito meses (recusando o cognome César), morto e lançado ao Tibre.]

 

Aula: unidade operacional (corpo-a-corpo) de um plano de exposições e debates (mente-a-mente) que se debruça sobre literatura selecionada, visando um aprendizado. Irmã de lição – este, vocábulo não tão simpático, porque evoca alguém “dando uma lição” a outrem; ou a obrigatória “lição de casa”.   

 

Aula: o respirar de um programa de ensino, de um projeto pedagógico, de uma aventura (sim!) de exploração das florestas, das montanhas, dos desertos, dos mares, dos céus das infinitas possibilidades do conhecimento, discípulo da sabedoria, embora às vezes não lhe dê ouvidos. Antigamente, meio de transmissão de conhecimento de uma geração a outra; modernamente, processo de interação entre professor e alunos no processo de manutenção e avanço do conhecimento; desde muito e para sempre, movimento intelectual de um (o professor ou mestre) em direção a outro ou outros (os alunos ou discípulos), para encontrar e puxar a meada do esclarecimento que estão buscando de comum acordo, embora nem sempre mediante comum alinhamento de vontades.

 

É que na noite que passou, eu, que raramente sonho, sonhei. Depois de seis anos afastado do magistério, sonhei que ministrava uma aula. Sonho vívido. Sentado, de pernas cruzadas, em uma cadeira do lado esquerdo da mesa (em vez de atrás, como é comum), eu explicava um assunto da minha área do conhecimento, diante de umas três dezenas de jovens, alguns atentos, outros não, três ou quatro displicente e acintosamente com os pés nas carteiras ou digitando celulares. Até aí, tudo normal, sonho coerente com a realidade. Mas acontece que a cadeira e a mesa em que eu me encontrava não estavam à frente de uma lousa branca pronta para os rabiscos com pincel atômico (curioso nome para uma simples caneta plástica que escreve em superfícies pouco porosas). Eu falava aos alunos de fora da sala de aulas, e eles me ouviam dentro dela. Isso, creio que “Freud explica”: tem a ver com a sensação de distanciamento dos alunos, que me colheu nos últimos anos lecionando – eu não sentia mais a cumplicidade professor-alunos, não via mais brilhos nos olhos ao avançar com lanterninhas na mata escura da ignorância, devassando-a para convertê-la, minimamente, em instrução.

 

Mais estranho que estar dando aula fora da sala, para os alunos lá dentro, foi que eu, depois de um tempo falando, me dei conta de que estava com a cabeça coberta por um chapéu, daqueles de pano, de cuja aba, na parte traseira, desce um cortinadinho para proteger do sol o pescoço e a parte superior das costas; chapeú cinza, da mesma cor de um exemplar que eu comprara há duas semanas para usar ao cortar a grama do jardim e do quintal. Quando percebi a inadequação da coisa, interrompi a aula, retirei o paramento inoportuno, pedi desculpas e retomei de onde havia parado. Antes da retomada, uns risinhos por causas que eu estava intimamente me questionando quais eram, irromperam em risadas abertas. Sei que isso também Freud explica. Mas me abstenho de expor qual seja a minha hipótese.

 

O que este sonho me diz, fundamentalmente, é que faz-me falta o que foi, por décadas, o “meu elemento”, o que dava sentido à minha vida, o que orientava o meu propósito. Sabiamente dizia Pablo Picasso (1881-1973): “O sentido da vida é encontrar o seu dom e o propósito da vida é compartilhá-lo”. Eu encontrei ambos muito cedo e tive a sorte da acolhida em duas universidades: a UNIMEP, em Piracicaba (1989-2004); e a UNESP, em Araraquara (2005-2020).

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2 Comments

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Ricardo Corrêa da Costa Filho
Ricardo Corrêa da Costa Filho
Nov 23, 2024
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Faz falta para os alunos do curso de Adm. Pública também como pude testemunhar, nos comentários de alunos no último ano dentro da sala de aula e comentei com o Senhor . Também tenho um chapéu desses [ azul], de fato não combina com a sala de aula. E misturando adm universidade e jardinagem só tenho uma crítica a fazer das bonitas árvores que cortaram recentemente no campus [ inclusive uma, entre o primeiro bloco e o espelho d’agua, que inclusive adaptaram o teto vazado para ela crescer em meio à construção e assim foi durante décadas- o que não justificaria qualquer “ risco a estrutura “]

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Valdemir Pires
Valdemir Pires
Nov 23, 2024
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