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  • Foto do escritorValdemir Pires

Um tempo leve


O tempo, desprovido de corpo, imaterial que é, não tem cheiro nem sabor; todavia tem densidade, peso, textura e cor; é sentido com essas qualidades:

– Este foi um dia pesado, agora preciso descansar para poder continuar.

– O colorido desta manhã no mar renovou minhas energias, me deu fome de viver.

– A semana foi áspera, me esfolou...

– Sei que esta será uma daquelas noites difíceis de respirar.

O pesadume, a aspereza, a opacidade do tempo se alternam com sua leveza, seu aveludado, sua luminosidade, na “vida normal”, marcada por fases e momentos satisfatórios e insatisfatórios, agradáveis e desagradáveis, alegres e tristes, felizes e infelizes.

Mesmo a “vida normal”, em tempos difíceis (sob tensão de natureza social e geral, como as provocadas por crises econômicas, disputas políticas, guerras e outros tipos de acontecimentos de alcance coletivo) ocorre sob a sensação permanente de peso, aspereza e opacidade. Cada dia parece um fardo difícil de carregar, um caminho pedregoso a percorrer, um quarto escuro de que não se poderá fugir. Tudo isso ampliando o desejo e a vontade de leveza, como rota de fuga, janela para outra paisagem, oásis para descanso. Ao contrário do que acontece em “tempos bons”. Quer dizer, há tempos leves e tempos pesados, enquanto tempos históricos, momentos da vida coletiva, dentro da qual transcorrem as vidas individuais. Ao passo que sob tempos históricos leves ou pesados, vidas individualmente consideradas podem tanto sofrer o pesadume e até ampliá-lo por razões próprias, como podem dele subtrair-se, parcial ou completamente.

É que a vida é “moldada” não somente pelos sentidos corpóreos e estritamente mentais: ela é sorvida pela alma (o que quer que esta seja ou qual seja o nome que se dê a ela). Como inevitável “companhia” do corpo, a alma é o locus imaterial da percepção do espaço (material) e das relações (materiais e imateriais) no tempo (imaterial). Talvez venha da alma o tempo individual e do tempo universal talvez se origine a alma, daí a ideia (ou sensação?) de que a morte seja um ponto coincidente com o ponto do nascimento (dois pontos ser tornando um único), depois de percorrida uma trajetória que descreve um círculo.

Assim, a sempre desejada leveza do tempo deve ser buscada num “lugar” a que o corpo não tem acesso, embora seja ele mesmo o acesso a este “lugar”, posto que nada se pode saber acerca da alma se desprovida do corpo: a vida depois da morte não deve ser leve nem pesada, em que pese os muito tristes avaliarem-na como alívio possível para o fardo que sentem enquanto respiram.

De que modo buscar a leveza do tempo na alma-companheira que não prima pela facilidade no trato, que parece sempre fugidia ao corpo-companheiro, como se não coabitassem? Não se sabe! Nunca ninguém descobriu a ponto de poder ensinar. O que se pode é levantar hipóteses. E aqui vai uma.

Uma alma isolada nutre-se apenas do corpo que acompanha. E vice-versa. Roem-se mutuamente, propensos à destruição ou, minimamente, ao desejo de desaparecer. Juntos, levam uma vida sem sentido, portanto pesada, áspera, opaca, girando em torno de si mesma. É isso: corpo e alma carecem de iguais-diferentes. Iguais como corpos-almas que são – uma mesma forma de vida, humana; diferentes por serem corpos-almas, vidas, sob circunstâncias e sonhos-pesadelos outros. Mesmo se ambas formarem distintos pesadumes, o fato de encontrarem-se alivia os fardos, se souberem trocar:

– Vamos agora, juntos, carregar o seu fardo; e amanhã, juntos também, carregaremos o meu. Levaremos os dois para o mesmo lugar. Depois buscaremos outro, até encontrarmos aquele onde desejaremos permanecer.

Não há, portanto, leveza possível no tempo que a alma, sozinha, sente: o que se pode é aprender a carregar os fardos da vida em comunhão, de modo a que corpo e alma não se sobrecarreguem e, assim, experimentem alguma leveza. Qualquer leveza do tempo que não a comungada, pode ser leveza, sim, mas ilusória. Não que esta não seja possível e tantas vezes necessária, mas é preciso saber a diferença entre a leveza verdadeira e a leveza ilusória do tempo.

-.-


O tempo pesado está aí, por aí, sempre – o tempo é pesado. Um tempo leve, não: ele tem que ser feito, conquistado, é fruto de decisão e ação de pelo menos dois corpos-almas. Na solidão não é possível. A solidão, em si, é um peso insuportável.

É... Um tempo leve, somente meu ou somente seu, não há nem pode haver, verdadeiramente. Oxalá, em meio a esses tempos que ora pesam sobre o mundo todo, possamos, juntos, aqui no nosso miúdo isolável, desfrutar algum tempo leve nosso, por meio de palavras, gestos, atitudes que, certamente, devem ser diferentes daqueles gestos, atitudes e palavras que dão forma aos tempos gerais que agora correm lá fora, à nossa revelia, e que, no momento oportuno (mantenhamos abertos os olhos!), precisaremos sacudir, juntamente com a multidão.

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