Valdemir Pires
Tudo é presente

Santo Agostinho (354-430 d.C.), um dos notáveis construtores da ideia de tempo tão fundamental à noção de vida subjetiva de que somos portadores, definiu (quase hereticamente!) passado, presente e futuro de tal maneira que, nela, somente o presente existe. O passado, já não é; o futuro, ainda não é. Entre o não mais e o ainda não, o presente, único que é. Para ele, o passado é o passado do presente (memória) e o futuro é o futuro do presente (expectativa). O presente é o pivô, o suporte do tempo: desde este ponto central, há lançamentos imaginários para a esquerda (passado) e a direita (futuro), considerando-se a “seta temporal”.
Apesar dessa definição seminal dos momentos temporais centrada no momento vivido, na experiência concreta de um eu (subjetividade) ainda não modernamente concebido, Agostinho, como teólogo cristão e católico, era neoplatônico, ou seja, tinha apreço à concepção idealista do mundo, traduzindo-a nos termos de uma noção religiosa, para a qual a eternidade (a vida após a morte) interessa mais que a vida temporal. Para ele, em última instância, o passado começa com o Gênesis (quando, a partir de um certo momento, o homem se perde, se dana) e termina com o Apocalipse (quando todo aquele que não fizer jus à salvação, afastando-se do que preconiza a doutrina, calcada em princípios que a garantem, será condenado para todo o sempre; enquanto os dóceis aos ensinamentos verão a face e usufruirão a bondade eterna de Deus). Dessa forma, Agostinho prezava mais o futuro, após a morte, que a vida terrena, devendo esta subordinar-se aos desígnios daquele.
Vem dos gregos – dos estoicos (século III a.C.), especialmente – a noção verdadeiramente presentificante do tempo, na medida em que Zenão de Cítio (335-264 a.C.), Sêneca (4 a.C.-65 d.C.) Epicteto (50-130 d.C.), Marco Aurélio (121-189 d.C.), postulavam a imperturbabilidade da alma (ataraxia). Para um verdadeiro estoico, quando a morte se faz presente, ele não mais está, motivo pelo qual a preocupação com a finitude (futuro último e inevitável) é uma tolice, já que enquanto a vida acontece, a morte é impotente. Da mesma maneira, um estoico praticante não teme o “mal tempo”, pois este, assim como o “bom tempo”, passa: a vida pulsa, com altos e baixos que se sucedem e há que se saber lidar com isso (coragem frente ao que se apresenta, se presentifica). E assim por diante, ao modo do que estava inscrito na lápide do mítico rei Sardanapalo:
Olhai para mim, sou cinzas, e, entretanto, fui o rei da grande Nínive. Tudo o que possuo agora são comilanças, bebedeiras e trepadas de que gozei durante toda minha vida. Todo o resto, tesouros, poder, eu perdi. Sim, aí está, para os homens, a verdadeira sabedoria.
Modernamente (ou pós-modernamente, caso se queira), Nietzsche (1844-1900) foi quem colocou o presente no trono e lhe eu o cetro, ao afirmar que Deus (ou qualquer noção de vida após a morte) está morto, que o tempo está mais para circular (“eterno retorno”) que para uma seta originada na Criação e a ser concluída ao som das terríveis trombetas do Fim dos Tempos. É como se Nietzsche ressuscitasse Sardanapalo e mobilizasse seus exércitos contra Platão, Plotino, Santo Agostinho e os pais da Igreja. E, com isso, resgatasse o valor da vida em si e não para algo além dela. Como se atribuísse ao “momento” entre nascimento e morte todo valor possível, desconsiderando qualquer outro. Como se o possível de viver, durante a vida terrena, pudesse ser algo tão vibrante a ponto de ir além do tempo, atingindo a eternidade – a eternidade do momento, do presente, da vida pulsante nas veias e do coração cheio de vontades e desejos, que não precisam ser justificados para ninguém, muito menos a um deus que dá todo indício de ter sido inventado pelos fracos.
Que trajeto, este do pensamento sobre o presente! Que trajeto! E aonde chegamos? Não, não chegamos, ainda: a questão do instante, do momento, do agora, do presente, contra o peso do passado e do futuro (entre estes o pós-morte), ainda está em aberto e talvez nunca se feche. Tudo é um grande presente, uma dádiva imensa: a vida, da qual pouco se sabe, de fato, apesar de tão esmiuçada pela Filosofia, pela Ciência, pela Religião, pela Arte, pela técnica e pela experiência. Mas um fato salta aos olhos: que não se saiba aproveitar este presente (uma existência terrena) é uma grande pena.