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  • Foto do escritorValdemir Pires

Tudo é passado



A unidade de medida das distâncias na astronomia é o ano-luz, que corresponde à distância que a luz percorre em um ano terrestre, o que totaliza 9,46 trilhões de quilômetros, tendo em vista que a velocidade da luz é de impensáveis 299.792.458 m/s (300 milhões de quilômetros por segundo, para simplificar). À primeira vista, é estranho que o espaço seja medido em tempo e não em metros ou quilômetros. Mas logo se entende o que ocorre: a unidade de medida astronômica é, de fato, a velocidade da luz, por ser ela a única variável constante em que se pode confiar. O ano comparece no conceito simplesmente porque simplifica, ao reduzir o tamanho dos números nos cálculos que precisam ser feitos.


A luz do Sol demora aproximadamente oito minutos e vinte segundos para chegar à Terra. Para se ter uma ideia da assombrosa distância que separa a Terra do Sol, basta lembrar que entre a Terra e a Lua a luz precisa de apenas um segundo.


Em astronomia, um segundo é, simultaneamente, muito tempo e pouco tempo. Muito tempo porque comporta dentro de si uma quantidade incontável de eventos, ocorrendo a velocidades elevadíssimas – é tempo suficiente para um mundo acabar ou outro surgir; pouco tempo porque um segundo é quase nada em cálculos que tomam por base o ano-luz – nas distâncias intergalácticas não se chega muito longe “caminhando” somente um segundo: mesmo a luz, com sua velocidade inatingível por corpos com massa, chega no máximo da Terra à Lua com esse tempo diminuto.


Enquanto a luz percorre a distância elementar coberta pela sua velocidade (os tais 300 milhões de metros por segundo), uma enormidade de eventos ocorre, mergulhando imediatamente no passado. Ou seja, ao presente que representa a incidência do raio solar na superfície do planeta corresponde um passado que preenche o tempo de mais de oito minutos e o espaço de 149.600.000 km. O raio de sol viajando no espaço carrega consigo mais passado que presente.


Quando um ser humano nasce, já carrega consigo nove meses de passado, de que não se lembrará. Quando morre, tudo que ele deixa é um passado, de que muito poucos se lembrarão, não por muito tempo (um século ou dois, para os mais notáveis?).


O destino do futuro é se tornar presente. E o do presente, passado. Futuro e presente, com uma diferença de tempo entre si, caem ambos na vala do passado.


A velocidade do som é de 340,29 m/s. É praticamente um paralítico se comparado à luz. Ainda assim, é rápido demais. Todavia, sua propagação leva um tempo para ser processada pelo cérebro humano, depois de “viajar” de uma boca a dois ouvidos. Assim, quando duas pessoas conversam, por mais que o façam com eficiência e a uma distância diminuta, o que uma diz leva tempo para chegar ao ouvido da outra e mais uma fração ínfima de tempo para ser processado – a demora total, juntando a propagação do som e a chamada velocidade de processamento, é de uma fração de segundos, ainda que as sinapses (tanto químicas, mais lentas, quanto elétricas) que atuam no processo demandem aproximadamente 200m/s (ou 720km/h) para acontecerem.


Seja entre grandes distâncias astronômicas, seja entre pequenas distâncias entre pessoas que conversam, tudo que acontece é uma “viagem”, de som ou de luz, de um ponto a outro. Toda viagem demanda tempo, maior ou menor conforme a velocidade e a distância. Dessa maneira, quando se dá a conhecer à mente humana como presente, todo evento já é passado, já viajou no tempo.


Para o ser humano, a memória (a preservação e o resgate do passado) é absolutamente definidora. A começar pelo fato de que o indivíduo – o eu – é, acima de tudo, a lembrança que cada um carrega de si. O eu é um passado mantido vivo na memória individual – se as lembranças desaparecem, o indivíduo derrete, restando um corpo sem significado para si.


A História, como memória coletiva e sentimento de pertença a um passado e a um desejo de futuro comuns, é a condição sob a qual o ser humano viaja no tempo (mais lentamente que o som e que a luz) em companhia de seus semelhantes, acalentando vontades e desejos e lutando contra os obstáculos à sua realização.


Tudo é passado, todos nós somos passado, do nascer ao morrer, ansiosos por viver o presente, fugidio. Que não o percebamos é um milagre, uma dádiva da ignorância a respeito da natureza deletéria do tempo. Que não nos alarmemos é uma manifestação de coragem. Que aproveitemos a vida, é uma escolha cuja alternativa não convém, por fechar as portas à possibilidade de, no futuro (amanhã mesmo), olhar para o passado que já estamos sendo (ainda ontem), e deixar de desejar o presente (bem agora), como tempo que nos é dado, presenteado, mas já negado.

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