Valdemir Pires
Tudo é futuro

Se o incessante devir tudo condena ao passado, o passado (o passo dado) é o futuro de tudo, inexoravelmente: tudo passa (menos o passar). O passo por dar (o futuro), é o “motor” do devir; inicialmente é uma inexistência com possibilidade de se materializar e, em seguida, é uma vontade (humana) ou uma propensão (da natureza) que viabiliza (presentifica, caminha para) uma existência. O futuro, na mente e no coração do homem, é imaginação (ao contrário do passado, que é lembrança), imaginação dotada de vontade.
Enquanto porta aberta para as possibilidades da matéria (à revelia do homem), ao sabor das relações intrínsecas ao espaço, ao tempo, à massa, à gravidade e à energia, o futuro se relaciona à expansão do universo e ao seu possível colapso (Big Crunch), situando-se no campo da eternidade. Enquanto possíveis desdobramentos da ação humana (individual e coletiva), a partir da imaginação e da criatividade derivadas da consciência e da inteligência, o futuro é a causa das transformações que produzem as biografias e a História, definindo e redefinindo a vida, as relações, o mundo social, as potencialidades e limitações da espécie dominante na Terra.
...o futuro é uma astronave que tentamos pilotar,
Não tem tempo nem piedade, nem tem hora de chegar
Sem pedir licença muda nossa vida, depois convida a rir ou chorar
(TOQUINHO, Aquarela)
Nada que resulta da ação humana se faz presente antes de ter sido futuro (presente imaginado); tudo que o ser humano faz, antes pensa, concebe, antevê, planeja, por minúsculo que seja o ato realizado: sinto sede, imagino um copo de água sendo levado à minha boca, dirijo-me ao armário e pego o copo, vou até o pote e o encho de água, levo-o à boca e sorvo o líquido, sacio a sede.
O futuro imaginável, por seu turno, tem por lastros o passado e o presente. Ele é imaginado como repetição, às vezes levemente modificada, do já vivido ou do sendo vivido: o passo a ser dado é bastante semelhante aos passos dados anteriormente. A não ser quando a imaginação ganha força suficiente para romper a sequência, promovendo um salto de qualidade: sinto sede, imagino um copo de água (gelada) sendo levado à minha boca, dirijo-me ao armário e pego o copo, vou até a geladeira e o encho de água com temperatura artificialmente modificada, levo-o à boca e sorvo o líquido, sacio a sede de um modo que nenhum homem, antes de alguém ter concebido a refrigeração, poderia ter saciado, a não ser que recorresse a processos naturais geograficamente localizados.
Logo se vê que ciência e tecnologia, não à toa, configuram o âmbito privilegiado do futuro da humanidade. Graças a elas, a potência da imaginação e da criatividade para modificar o mundo (especialmente o natural, físico) é elevada ao máximo; e a cada nova conquista científica e tecnológica aumenta a rapidez com que novos saltos podem obtidos. Resulta daí a sensação de aceleração do tempo: o futuro (enquanto possíveis modos e maneiras diferentes de viver e fazer) chega cada dia mais rápido, quase se confundindo com o presente – o amanhã imbrica com o hoje.
Quando a fronteira entre o hoje e o amanhã fica borrada, porque o futuro avança sem controle sobre o presente, a sensação é de estar em meio a um forte vendaval ou ciclone, sendo difícil ficar em pé e manter o rumo almejado. Não só os acontecimentos presentes são afetados: o próprio planejamento (cuidado com os intentos e rumos no futuro) é dificultado, pois não se consegue mais distinguir entre curto, médio e longo prazos, dada a propensão de tudo a apontar para o curtíssimo prazo, o momento, o instante, a fração de tempo que ao surgir, já pereceu (um futuro que deixa de sê-lo quase no ato mesmo de ser).
O século XXI é o futuro que ontem imaginamos e desejamos, com toda potência que poucos séculos antes adquirimos. E trouxe consigo um presente (de grego?) que ainda não compreendemos, em grande medida porque dominamos a ciência e a tecnologia mais rapidamente do que conseguimos compreender a nós mesmos e ao tempo (submetido à aceleração desmedida que ora nos afeta).
Hoje nutrimos a ambição de “viver o presente” (como fuga?), mas é difícil chegar a ele antes que tenha sido deslocado pelo futuro que “anda” mais rápido do que nossa imaginação, quanto mais as nossas pernas e braços e coração.