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  • Foto do escritorValdemir Pires

Rasgar o véu do tempo



O tempo histórico corrente – este presente (que dura alguns anos, considerando-se uns anos antes e uns anos depois do imediato) vivido por cada um como se fosse o mesmo para todos, apesar de ninguém senti-lo exatamente da mesma maneira –, este tempo-agora comum, enquanto momento que oferece possibilidades e impõe limitantes específicos à sociedade contemporânea (incapaz de modificá-lo até que forças incontroláveis façam com que se torne outro), é uma espécie de véu, através do qual não é possível enxergar o futuro senão como algo muito parecido com o presente.

O véu do tempo corporifica-se pelo entrelaçamento dos finos, mas fortes, fios opacos dos interesses estabelecidos, das práticas habituais, das sensações corriqueiras, das ideias consagradas, dos sonhos massificados, dos medos estereotipados, da inércia confortável da vida inautêntica, avessa à loucura e à poesia, temerosa do ridículo a que é submetido tudo que não é ou não parece “normal”.

Este véu do tempo (histórico) é danificado com o passar do tempo (cronológico), porque os fios que o constituem sofrem os efeitos do afrouxamento e da distensão – descontentamentos coletivos, manifestações massivas, frequentes fases de desgoverno, sucessivas desordens e crises, confrontos e guerras, terminam esburacando o véu temporal. Quando isso acontece, ele imediatamente é remendado aqui e ali, a serviço dos interesses e sentimentos que não desejam o vislumbre de novos tempos, diferentes dos atuais. Os remendos vão se tornando numerosos e chegam ao excesso, desfigurando o tecido, o que enseja o novo – não necessariamente melhor.

Encontrar (e preservar, afastando remendos) e até fazer, deliberadamente, rasgos novos no tecido do tempo-agora, buscando enxergar através deles, sem obstrução, um futuro diferente, em que os sonhos e medos sejam outros, graças a novas ideias e a distintas constelações de forças, que podem desde já ser concebidas e articuladas, este é o esforço capaz de manter vivas as esperanças, assim evitando o desespero, mesmo nos conturbados momentos de transição de um tempo histórico a outro. Da percepção à ação, o desafio é tornar possível a travessia de novos fios pelas fendas temporais defendidas dos remendos insistentes, a fim de com eles tecer o véu do tempo novo.

Mas de onde pode vir tamanha clareza e tanta força? Ajudam o olhar sereno iluminado pela busca da sabedoria, o contentamento com pouco para si, a atitude justa com os outros, a coragem que não se torna temeridade (principalmente de ousar loucuras e de suportar a rejeição, o estranhamento e até a ridicularização), sempre com fé na vida, esperança no amor e boa dose de compaixão. Afinal, não são essas as fontes dos materiais de que devem ser feitos os fios do véu do tempo novo almejado desde os mais remotos velhos tempos?

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