Uma das principais causas do desencanto e do consequente abandono das experiências de participação popular no processo orçamentário tem sido a frustração dos participantes diante do não cumprimento do que é decidido a duras penas em dinâmicas deliberativas trabalhosas e altamente conflituosas. Depois de tanto esforço realizado e da crença renovada na atuação do governo para solucionar problemas coletivos, os cidadãos aderentes à prática do orçamento participativo, nesses casos, terminam avaliando que foram, “outra vez”, ludibriados pelos “políticos”.
Assim, é logo criticada e geralmente rechaçada qualquer proposta de orçamento participativo que se pretenda apenas consultiva, mesmo que seja, sinceramente, como prevenção a tais frustações, mesmo estando o proponente sinceramente imbuído de vontade política de cumprir o pactuado com a sociedade civil. Se é para convidar os cidadãos comuns à mesa deliberativa sobre os destinos dos recursos públicos, que seja, portanto para que decidam, de fato – é o raciocínio dos críticos.
Este dado de realidade dificulta que se perceba, com razoabilidade, que o processo orçamentário, em si, mesmo sem a participação da sociedade civil, é deliberativo com risco de, ainda assim, não ser cumprido. Isso porque todas as despesas decididas e fixadas nas dotações orçamentárias na lei anual baseiam-se numa estimativa de receita, que nunca será, ao longo da execução orçamentária, a mesma imaginada no ano anterior como parâmetro orçamentário.
Dessa constatação elementar deriva o fato de que por mais deliberativo que seja (como o é toda lei orçamentária), nenhum processo humano pode fixar o futuro: o que se decide no orçamento público será sempre uma manifestação de vontade em relação à realidade futura. Portanto, quem quer que diga o contrário aos participantes do processo orçamentário (sejam populares ou parlamentares) estará faltando com a verdade completa. Vem daí aquele argumento aparentemente inatacável, depois de frustrada uma decisão de gasto: “O dinheiro estava no orçamento: onde foi parar, quem roubou?” É pedagógico deixar claro que a decisão orçamentária é, sempre, passível de não cumprimento.
O que é fundamental, para não frustrar expectativas ou trair pactos no orçamento participativo são os princípios da transparência e da verdade. Transparência para que todos saibam o que acontece o tempo todo (na elaboração e na execução do orçamento): por exemplo, se não foi pavimentada a rua que se decidiu pavimentar, mostra-se que foi cancelada a dotação por frustração de receita num momento em que outras despesas não puderam ser cortadas. Verdade para que não se inclua no orçamento nada que não se esteja, de fato, desejando realizar, evitando, por exemplo, superestimar receita para que as despesas do OP caibam no orçamento e acalmem os participantes, que posteriormente serão “enrolados” por não terem acesso aos documentos de execução orçamentário ou não serem capazes de interpretá-los.
Isso posto, o orçamento participativo deve ser deliberativo sempre que puder (por princípio e para que seja atraente), com a clareza do limite dessa deliberação frente a uma receita estimada. E convém que seja consultivo sempre, oportunizando o recolhimento de informações valiosas relativas às demandas e necessidades coletivas que devem ser objeto de atendimento pelo governo, na medida de suas possibilidades face aos recursos econômicos e financeiros limitados. E valem, também neste caso do orçamento consultivo, os princípios da transparência e da verdade. O governo que opta por um orçamento consultivo deve sinceramente estar disposto a utilizar as informações recolhidas dos cidadãos para qualificar suas decisões alocativas no projeto de lei orçamentária, evadindo-se de deixar o processo simplesmente nas mãos de técnicos, que não vivem a realidade dos potenciais beneficiados com as despesas públicas.
Processos consultivos na gestão orçamentária, portanto, se de fato respeitados, reduzem a natureza estritamente tecnocrática da deliberação, e, assim, aumentam a chance de impacto positivo e a efetividade das despesas públicas. Processos consultivos dessa natureza, são, portanto, qualitativamente superiores a eventuais propostas de participação deliberativa que depois será desrespeitada.
Então, orçamentos participativos de alta qualidade política são aqueles cuja natureza é deliberativa onde isso cabe e é possível e apenas consultiva onde isso não cabe e não é possível, a escolha sendo feita situacionalmente, em cada caso e momento, porque apenas consultivo pode não atrair e apenas deliberativo (depois frustrado) pode afastar quem foi inicialmente atraído. Melhor ainda é o orçamento participativo que combina essas duas naturezas, o governo permitindo deliberação popular em relação a despesas onde isso cabe (por exemplo, uma percentagem das despesas com investimento) e fazendo consultas bem organizadas e depois utilizadas onde o deliberativo não é possível.
Com relação às decisões deliberativas, o princípio da verdade melhor se aplica a elas quando são condicionadas. Por exemplo: a ponte escolhida como prioridade será construída, a depender de transferência voluntária do governo federal, estando em tramitação convênio para esta finalidade. E monitora-se o processo ao longo do ano.
Uma possibilidade muito concreta na gestão orçamentária participativa é a combinação de participação deliberativa com participação consultiva. Um exemplo: o governo abre consulta popular bem estruturada e adequadamente comunicada à população, por meio de canais virtuais, a fim de organizar listas preliminares que subsidiarão deliberações em plenárias e assembleias populares. O processo virtual é consultivo e o presencial é deliberativo. E como será “vendido” este orçamento à opinião pública? Como deliberativo, sem faltar ao princípio da verdade.
Conclusão: orçamento participativo de qualidade política suficiente para ser acolhido pelos setores progressistas é aquele que se baseia no princípio da transparência e da verdade (ou sinceridade, mais precisamente), quiçá com alto potencial pedagógico acerca da natureza das decisões coletivas em torno de recursos escassos, sendo ora deliberativo, ora consultivo, ora misto (deliberativo e consultivo), conforme as circunstâncias econômicas e financeiras e de acordo com pactos políticos com alto teor de sinceridade da parte dos elaboradores e executores do orçamento em pauta.
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