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  • Foto do escritorValdemir Pires

Os juros e o tempo



Em português, a palavra juro carrega uma notória negatividade, pois implica em restrições à liberdade de ação (e às vezes até de pensamento) futura. Como verbo, o pronunciante desta palavra se compromete, religiosa ou moralmente (publicamente ou em foro íntimo), com um comportamento ou atitude – jura obedecer a um mandamento, honrar um acordo, não descumprir uma promessa qualquer, o que implica em abrir mão de prazeres, vantagens ou comodidades de que poderia desfrutar caso não houvesse jurado. Como substantivo, juro significa um acréscimo a um montante, a ser pago pelo tomador de empréstimo. E neste caso, quem acessa o crédito assume um compromisso mais forte que o moral – trata-se de um compromisso jurídico: tudo será feito para ressarcir o emprestador prejudicado, caso o tomador do empréstimo não honre o compromisso, a jura que fez.


Os juros carregam consigo, também, como mancha histórica, o fato de terem sido considerados um pecado, punido pela Igreja Católica. Admitia-se, até uma altura da Idade Média, que cobrar adicional pelo empréstimo de dinheiro era abusar dos que dele necessitavam, recorrendo aos que o tinham em abundância ou excesso. Como já se associava a cobrança do acréscimo de juros proporcionalmente ao tempo, os teólogos argumentavam que ninguém poderia cobrar sobre a passagem do tempo, pois este não pertence a nenhum ser humano, mas a Deus. Foi necessária a argumentação e ação diligente dos protestantes para suspender essa noção, em momento histórico em que as atividades econômicas, de produção e de consumo, passaram a depender de modo fundamental de mecanismos sofisticados de financiamento (destinados, principalmente, a sustentar períodos de maturação de investimentos e a amparar a ampliação do consumo via crédito).


Então, historicamente, primeiro o tempo aparece como pertencente a Deus e os usurários e agiotas cometendo o pecado de colocá-lo a serviço deles, em desfavor dos menos afortunados, em atitude acintosa contra a divindade. Sendo que entre esses “menos afortunados” estavam incluídos, não raro, reis e senhores que necessitavam mobilizar muito dinheiro para fazer a guerra ou alguma estrepolia menos destrutiva, às vezes até construtiva. Mais tarde, o tempo surge como uma necessidade dos novos empreendedores, que começaram a “empatar” capital, próprio e de terceiros, para produzir e, depois, vender com lucro. Pareceu justo que quem tomava emprestado para produzir e ganhar em cima disso, entregasse uma fatia do lucro obtido, na forma de juro, a quem auxiliou na construção da oficina, na compra das máquinas etc. Quanto aos compradores a prazo de bens de consumo, justificou-se pagarem juros pelos empréstimos (crediário) por outra razão, também associada ao tempo: quem lhes emprestava abria mão de consumir de imediato, adiando este consumo – um sacrifício de que se abria mão em troca de poder consumir mais no futuro, graças ao recebimento posterior do valor emprestado acrescido dos juros.


Não há, portanto, qualquer possibilidade de entender a cobrança de juros na economia senão associando-a ao transcorrer do tempo: o lapso de tempo entre a entrega do dinheiro do rentista ao investidor ou ao consumidor (ou até ao especulador) que o demanda e a sua devolução considerando a adição montante + juros, conforme um percentual de rendimento contratualmente definido.


Resta saber o porquê de os juros serem maiores ou menores, a cada momento e em situações específicas. Para isso intervêm dois fatores: o nível de oferta e demanda por dinheiro e o limite à ganância. Uma vez constituídos os mercados (sistemas de trocas como forma de organização da vida produtiva), entre esses se estruturou o mercado financeiro, onde se “compra e vende” dinheiro. Portanto, como uma mercadoria (embora com características muito distintas das outras) o dinheiro passou a ter o seu preço (os juros são o preço do dinheiro), este variando ao sabor da oferta e da demanda – quanto maior a liquidez (oferta de dinheiro), menor o preço do dinheiro, o juro, e vice-versa. Acima disso, já passa a ser ganância do rentista e o juro se torna usura, a agiotagem toma conta do mercado.


Quanto maior a taxa de juros, maior será o volume de dinheiro acrescido ao montante a ser devolvido ao ofertante do empréstimo, às custas do tomador. Assim, se este tomador for, por exemplo, um trabalhador, ele terá que trabalhar mais para pagar o empréstimo, o qual, nesse caso, representa a antecipação de um consumo. Por exemplo, o operário comprou uma geladeira a prazo, em vez de poupar para comprá-la a vista. Ele antecipou o consumo, comprou a geladeira antes de seus salários permitirem, graças à “ajuda” do banco. Diminuiu a temperatura dos alimentos, mas aumentou a temperatura do seu corpo: suará mais para pagar o eletrodoméstico, em “suaves prestações”.


A ilusão da “suave” prestação termina por impor ao consumidor a crédito uma condenação pesada. Comprando a crédito a vida inteira, ele ganha um patrão adicional: ao seu empregador se junta o banqueiro. Enquanto isso, os produtores de geladeira, vendo-se frente a uma demanda adicional por refrigeradores, graças às vendas a prazo, recorrem ao banqueiro para investir em novas fábricas ou comprar máquinas adicionais; e em troca pagam juros que “comem” uma parte do seu lucro; só que os juros são despesas financeiras para o produtor, que as repassam ao preço da geladeira – ela fica mais cara por causa dos juros ao produtor e, depois, ao preço é acrescido o juro ao consumidor a crédito. Ou seja, o banqueiro ganha sempre, os empresários “se viram” (repassam os juros pelos empréstimos que eles fazem para investir) e, na ponta final, os consumidores pagam tudo, tendo que trabalhar mais para isso. Muito funcional, não é?


Sim, até que a especulação esculhambe com tudo isso. E veja, especulação como prática que é pior que a usura, ou cobrança elevada de juros sem motivo técnico justificável (liquidez, nível de risco etc.). Quem passa a ganhar dinheiro fácil com as taxas de juros elevadas são, então, até mais que os banqueiros, os especuladores, os que ganham dinheiro sem nunca trabalhar, apenas administrando riscos na troca entre dinheiro vivo e títulos (papéis, como ações, debêntures, promissórias etc.). É o momento em que, na metáfora do grande economista do século XX, J. M. Keynes, a bolha de ar (práticas especulativas) fica maior que o aquário, cuja água representa as práticas econômicas produtivas, melhoradas quando as bolhas de ar (empréstimos “justos”, por exemplo) são pequenas e “oxigenam” o ambiente econômico.


A especulação, portanto, é uma prática que consiste em evitar o tempo de trabalho ou de dedicação ao empreendimento produtivo (prática empresarial do lado real da economia), dedicando atenção e esforços apenas ao lado monetário e financeiro da economia, buscando levar vantagem movimentando-se no interior das relações entre os que dispõem de liquidez e querem viver de rendimentos financeiros e os que precisam de liquidez para se dedicar às atividades produtivos ou acessar o consumo. Assim entendida, a especulação é uma forma que o especulador encontra para absorver o tempo de trabalho e/ou de empreendimento alheio para manter o seu livre; é, portanto, um modo de escravizar os outros sem mover um chicote sequer para isso. Dados o sistema econômico atual, parece impossível eliminá-la; e, pelo andar da carruagem, vai ficando cada vez mais difícil domá-la. Pela performance que têm apresentado, os tais bancos centrais independentes vão deixando claro que se prestam a proteger a fera...


Será que existe futuro para a utopia, branda, de uma sociedade em que a maioria das pessoas – pobres – possa pelo menos trabalhar para sustentar a si e ao patrão, aliviando-se daqueles que, hoje, exploram crescentemente até o patrão, “coitado”, com seus lucros sendo roídos cada vez mais pelos juros, quando não consegue repassá-los aos preços, que a queda na demanda tende a reprimir porque os consumidores a crédito minguam e a inadimplência se expande? Será que se pode acreditar na possibilidade de menor volume de tempo dos trabalhadores ser-lhes subtraída por prática de juros abusivos, restando injusto apenas aquele volume de tempo trabalhado não pago, que os marxistas chamam de mais-valia?

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