No penúltimo parágrafo da conclusão de Uma breve história do tempo, talvez o mais bem-sucedido de todos os livros de divulgação científica já publicados, Stephen Hawking (1942-2018) rebaixa o pensamento filosófico, enquanto entroniza o método científico, nos seguintes termos:
"Até o momento, a maioria dos cientistas tem andado ocupada demais elaborando novas teorias para descrever o que o universo é para poder perguntar por quê. Em contrapartida, aqueles cujo ofício seria perguntar por quê, os filósofos, não foram capaze3s de acompanhar o avanço das teorias científicas. No século XVIII, eles consideravam a totalidade do conhecimento humano, incluindo a ciência, como seu campo de atuação e debatiam questões como se o universo teve um início. Entretanto, nos séculos XIX e XX, a ciência se tornou técnica e matemática demais para os filósofos, ou para qualquer um, com exceção de uns poucos especialistas. Os filósofos reduziram o escopo de seus questionamentos de tal maneira que Wittgenstein, o filósofo mais famoso do século XX, disse: “A única tarefa que resta à filosofia é a análise da linguagem.” Que vergonha para a grande tradição filosófica de Aristóteles a Kant!"
Que prepotência! É de fazer qualquer leitor minimamente sensível e atento que, com razão, tira o chapéu para o renomado físico (enquanto gênio de seu campo de conhecimento), colocá-lo de volta sobre a cabeleira (se houver) e questionar a atitude que poderia ter sido evitada.
Primeiro, e menos significativamente: entre tantos nomes, será mesmo Ludwig Wittgenstein (1889-1951) o filósofo mais famoso do século XX? O alemão Martin Heidegger (1889-1976), por exemplo (e lembrando apenas um nome), não seria tanto quanto ou mais famoso que o austríaco elogiado por Hawking? Heidegger que, aliás, é, atualmente, reconhecido como um dos principais problematizadores da questão do tempo no campo da filosofia – assunto também de Hawking, pelo viés da ciência. Talvez o embaraço que os não-especialistas (entre eles os filósofos) enfrentam ao ler as obras densamente matematizadas dos físicos do século XX, na busca de entender o que é o tempo, atinja os físicos (inclusive Hawking, provavelmente) que busquem o mesmo no altamente complexo pensamento metafísico de Heidegger.
Segundo: não há originalidade no ataque de Hawking aos filósofos e seus métodos. No dia 6 de abril de 1922, na França, a convite Sociedade Francesa de Filosofia, um Albert Einstein (1879-1955) já famoso e com vinte anos a menos que Henri Bergson (1859-1941), também amplamente reconhecido, já recusara aprofundar as diferenças de tratamento ao tempo que havia entre eles, afirmando, sem mais detida análise, que o tempo é uma ilusão da subjetividade: o que existe é o espaço-tempo. Não bastou que na segunda edição de seu Duração e simultaneidade (em que se detém na análise da teoria de Einstein, com o reconhecimento deste de que a entendera) Bergson se explicasse, para fazer verem que Édouard Le Roy (1870-1954) tinha razão, na ocasião, ao afirmar que “Concretamente, parece-me que o problema do tempo não é o mesmo para Einstein e Bergson.”
Por mais evidente que possa ser que a ciência, sozinha, não tem como esgotar a problemática do tempo, assim com esta impossibilidade alcança também a filosofia, desde o advento da teoria da relatividade a interpretação corrente é a de que a ciência enterrou a filosofia ao agarrar-se à objetividade (aliás tantas vezes apontada como inatingível até mesmo por cientistas), enquanto aquela segue “tergiversando” sobre o terreno escorregadio da subjetividade, das explicações ancoradas em métodos duvidosos ou na falta deles.
Até hoje o debate sobre o tempo está encalacrado entre duas posições antagônicas. A de Einstein: “O tempo dos filósofos não existe.”; e a de Bergson: “...quando admitimos que a teoria da relatividade é uma teoria física, nem tudo é fechado.” De fato, a explicação “objetiva” da ciência para o fenômeno do tempo não dá conta de tudo que ele é. Assim como não o faz a explicação “subjetiva” de la durée bergsoniana ou a fenomenológica de Ser e tempo (de Heidegger).
Não raramente o debate descamba em busca de resposta à pergunta sobre a existência ou não do tempo. Os polos opostos se entrincheiram, claro, entre os que dizem ser o tempo uma ilusão (ou, quando muito, um dado psicológico) e os que o afirmam possuidor de uma materialidade bastante estranha à experiência (um “tecido” espaço-tempo), sem desconsiderar a massa de crentes no deus Tempo ou no juiz Tempo, que está pouco preocupada com polarização objetivo x subjetivo na busca da verdade. Pouca preocupação há, nesse imbróglio, em definir o que seja existir. Se existir depende de materialidade, o que remete a espaço, o tempo existe na concepção einsteiniana (espaço-tempo), mas não na bergsoniana; todavia, o sentimento de duração , bergsoniano, assim como o de finitude, embora no âmbito da subjetividade, faz crer que o tempo existe e mais: é parte intrínseca daquilo que o ser humano é; existe com ele e não só isso: concorrer para defini-lo tal como essencialmente é.
Mas dizer é, é conjugar o verbo ser. O que é ser? Eis uma pergunta mais difícil de responder que aquela que indaga sobre a existência. Existir é fácil e pode até ser dar por puro acaso: todo ente existe – a pedra, a ave, o Putin ou qualquer russo. Mas a pedra não chega a ser, qualquer homem, entretanto, é – se autenticamente ou não, é outra conversa, também encetada por Heidegger, cuja leitura há que se perguntar se ocorreu a Hawking.
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